Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades? Desde que tomou posse como Presidente de Angola, João Lourenço tem promovido a imagem de um líder reformador — chegou a dizer que quer ser o Deng Xiaoping do seu país — e de combatente inveterado da corrupção — começando pelos interesses dos mais poderosos, como o seu antecessor, José Eduardo dos Santos, e a sua família. Nos últimos meses, tem corrido o mundo a garantir o seu comprometimento com “verdadeira cruzada contra a corrupção e a impunidade em toda a sociedade”.
Porém, não são apenas princípios éticos que movem o Presidente de Angola. A braços com uma forte crise económica, João Lourenço quer convencer o mundo (Portugal incluído) que o seu país mudou. Será bem assim? A verdade estará algures pelo meio — e o Diabo nos detalhes.
Exonerador Implacável? Sim, mas…
Ninguém julgou que tanto fosse feito, nem que fosse feito tão depressa. Pouco depois de ter tomado posse, João Lourenço pegou na caneta de Presidente e começou a assinar um tipo de documento que até então parecia ter caído em desuso em Angola: um despacho de exoneração. Mas não foi apenas um — foram centenas, que afetaram vários círculos da governação e do poder angolano. Foram vários os setores e os cargos tocados: governadores de províncias e da banca estatal, lideranças dos serviços secretos, chefias militares. Porém, o verdadeiro bruaá só viria com a exoneração de figuras verdadeiramente próximas do seu antecessor, o ex-Presidente José Eduardo Santos: os seus filhos.
Primeiro, João Lourenço exonerou Isabel dos Santos, filha mais velha do ex-Presidente e mulher mais rica de África, do cargo de presidente do conselho de administração da Sonangol. Horas depois, retirou a Tchizé dos Santos e a Coréon Dú a concessão que a produtora por ambos detida, a Semba Comunicações, tinha para gerir o Canal 2 da Televisão Pública de Angola. Meses depois, exonerou o filho mais velho do ex-Presidente, José Filomeno dos Santos, da liderança do Fundo Soberano de Angola. A situação tornar-se-ia particularmente gravosa para este último, conhecido como Zenú. Em setembro, após ser investigado, o Ministério Público acusou-o de vários crimes — crimes de associação criminosa, falsificação, tráfico de influências, burla, peculato e branqueamento de capitais — e colocou-o em prisão preventiva.
Quando fez campanha para as eleições gerais de 2017, chegando a contar com a presença de José Eduardo dos Santos nalguns desses momentos, João Lourenço era apresentado como “Mimoso”. Essa é a sua alcunha de infância, por ser um rapaz “muito calmo, [que] não queria confusão” — e que muitos pensaram vir a ser a sua postura perante o seu antecessor e os muitos que enriqueceram de forma pouco clara, e nunca esclarecida, ao mesmo tempo que Angola permanecia como um dos piores países em indicadores como a taxa de mortalidade infantil. Porém, com a sua subida ao poder, e perante a catadupa de despachos de acusação que levavam a sua assinatura, o “Mimoso” passou a ter outra alcunha: o “Exonerador Implacável”.
As exonerações, feitas no âmbito de uma combate publicamente assumido contra a corrupção, surpreenderam alguns dos observadores mais críticos da atuação de José Eduardo dos Santos. Um deles é Marcolino Moco, primeiro-ministro entre 1992 e 1996 que nos últimos anos de governação de José Eduardo dos Santos foi ostracizado no MPLA por se ter tornado uma voz crítica. “As circunstâncias e a situação a que chegámos até 2017, com José Eduardo dos Santos a praticamente tirar o pé do acelerador do desenvolvimento económico, teve um grande impacto”, disse numa entrevista por telefone ao Observador. “Durante praticamente 16 anos, ele não governou. Governou-se! A si e aos seus filhos.”
Quanto à governação de João Lourenço — que em janeiro de 2018 nomeou Marcolino Moco para o cargo de administração não-executivo da Sonangol, pondo fim à sua travessia no deserto — o ex-primeiro-ministro faz uma avaliação mais positiva. “Tem surpreendido pela positiva”, diz, sublinhando ainda assim que há muito ainda por fazer. “Pela primeira vez, tocou-se ao de leve no problema da roubalheira, que continuou mesmo quando João Lourenço já estava eleito.”
Ainda assim, nem todas as avaliações são do mesmo grau de otimismo. Ricardo Soares de Oliveira, professor em Oxford e especialista em Angola, faz uma avaliação de meio-termo às exonerações de João Lourenço e às pessoas com quem o atual Presidente de Angola se faz rodear. “Em larga medida, as equipas de João Lourenço são equipas do MPLA, com um historial inequívoco na governação de José Eduardo dos Santos”, diz por telefone ao Observador. “João Lourenço não foi buscar quadros nem à oposição, nem à sociedade civil, nem à diáspora. Há algumas exceções, mas, grosso modo, conhecemos os quadros todos.”
Ainda assim, o académico de Oxford sublinha que, além de só ter passado um ano, o terreno em que João Lourenço joga não é propriamente fácil. “Há que analisar o grau de mudança no contexto da presidência de João Lourenço perante critérios realistas. Ele não poderia criar uma elite que não existe. Além disso, João Lourenço é um fiel do MPLA. Ele não tem muita ambiguidade em relação ao partido. Ele acha que o partido é bom e que José Eduardo dos Santos é que era mau” sublinha Ricardo Oliveira Duarte.
Ao Observador, o diretor de investigação para África do think tankChatham House, Alex Vines, explica que as exonerações decretadas por João Lourenço foram um passo fácil e meramente político — mas necessário para mais à frente dar passos mais difíceis e no campo da economia. “Ele nunca poderia ter um processo robusto de reformas sem antes consolidar o seu poder através da subida à liderança do MPLA, que já aconteceu. Agora que ele é o Presidente do país e do MPLA, está finalmente em posição para levar para a frente um conjunto mais sério de reformas”, disse o investigador britânico.
Agora, o Presidente já fala — e tem um tema preferido
José Eduardo dos Santos nunca teve o dom da palavra. Mesmo com a ajuda do ex-jornalista e dramaturgo José Mena Abrantes, que durante muito tempo lhe escreveu os discursos, o ex-Presidente de Angola nunca habituou o seu povo nem o estrangeiro a tiradas pontiagudas ou a entusiasmos retóricos. As entrevistas, além de poucas, raramente foram momentos inesquecíveis e imponentes. Em 2013, em entrevista à SIC, José Eduardo dos Santos chegou até a ler respostas praticamente completas de um papel.
Com João Lourenço, a agulha é outra. Embora esteja longe de ser um grande orador, o atual Presidente de Angola esforça-se por ter voz — em Angola mas, sobretudo, noutras partes do mundo, com entrevistas a vários órgãos de comunicação social estrangeiros.
Ainda quando era candidato à presidência, João Lourenço falou ao Washington Post. Já depois de eleito, começou a verdadeira ronda pela imprensa internacional. A primeira entrevista foi à EFE, agência de notícias de Espanha. E a lista continua: João Lourenço sentou-se para falar com a Deutsche Welle, com a Radio France Internationale e também com a Euronews.
Em todas as entrevistas, não houve uma em que João Lourenço não tivesse falado da corrupção e do seu combate. Porém, depois de rodar o mundo e os media internacionais em declarações atrás de declarações, foi em entrevista a um órgão de comunicação português — o Expresso — que João Lourenço teve a língua mais afiada. Contra quem? Precisamente contra o seu antecessor, José Eduardo dos Santos e alguns daqueles que o rodeavam no poder.
Ao início da entrevista, queixou-se de não ter havido uma verdadeira passagem de pastas de uma presidência para outra, atribuindo a esse facto razões pouco próprias. “Estivemos diante de uma anormalidade com despachos feitos em vésperas das minha investidura, nomeadamente, entre outros, sobre o porto da Barra do Dande, para favorecer quem pretendiam favorecer”, disse, em referência à obra que chegou a ser adjudicada à Atlantic Ventures, empresa associada a Isabel dos Santos, que entretanto processou o Presidente após a decisão de lhe retirar aquele contrato.
Mais à frente, João Lourenço fez até referência ao caso que levou José Filomeno para a prisão preventiva, em resposta a uma pergunta onde este não era referido diretamente. “Houve a tentativa de retirada dos parcos recursos do Estado de cerca de 1,5 mil milhões de dólares para serem depositados numa conta do exterior de uma empresa de fachada”. Além disso, apontando que houve em Angola um “banquete”, recusou a ideia de ter traído José Eduardo dos Santos e responde: “São conhecidos os que traíram a pátria”.
O choque da entrevista foi tal que, esta quarta-feira, José Eduardo dos Santos saiu do seu longo período de silêncio e convocou uma conferência de imprensa. Entre poucas palavras, disse: “Não deixei os cofres do Estado vazios quando na segunda quinzena do mês setembro de 2017, fiz a entrega das minhas funções ao novo Presidente da República”. José Eduardo dos Santos acusou o toque deixado nas várias entrevistas que Lourenço deu nos últimos tempos.
Mas não é só aos media que João Lourenço tem deixado esta mensagem. No VI Congresso Extraordinário do MPLA, em que João Lourenço foi eleito presidente também daquele partido, começou com uma nota cordial para o seu antecessor — com um “Viva!” para José Eduardo dos Santos e outros salamaleques para o “estadista” que “trouxe a tão almejada paz definitiva” — mas pouco demorou a mandar nova alfinetada. Elencando como “males a corrigir” a “corrupção, o nepotismo, a bajulação e a impunidade” que se instalaram “nos últimos anos e que muitos danos causam à nossa economia, afetam a confiança dos investidores, porque minam a reputação e credibilidade do país”, João Lourenço apontou o dedo para dentro do partido. “Não permitiremos que comportamentos condenáveis dessa minoria gananciosa manche o bom nome deste grande partido, que foi criado com suor e sangue para defender uma causa nobre”, disse.
Mais contido, mas ainda assim insistindo no seu tema preferido, João Lourenço foi também ao Parlamento Europeu em julho comprometer-se com uma “verdadeira cruzada contra a corrupção e a impunidade em toda a sociedade”.
Como dá para ver, João Lourenço tem falado muito sobre o combate à corrupção. Jon Schubert, investigador especializado na etnografia política de Angola, diz ao Observador: “Não sabemos se tudo isto não passa de um show. Cai tudo muito bem na opinião pública, a nível nacional e internacional. Mas o dia a dia das pessoas não mudou assim tanto”.
Quem aponta na mesma direção é Didier Péclard, co-diretor da revista Politique Africaine e professor na Universidade de Genebra. Por detrás desta insistência temática nos mais diversos fóruns pode estar uma tentativa de ocultar outros problemas prementes, sugere uma entrevista por e-mail ao Observador: “Ao manter um discurso que se afirma de rutura, João Lourenço persegue uma estratégia de tensão, deixando entender que ninguém será poupado. Mas esta estratégia também pode ser uma maneira de desviar as atenções da crise económica e das dificuldades em que se encontra o governo”.
De mão estendida para o mundo…
Angola precisa de dinheiro e de investimento. Além de ter uma dívida pública que ultrapassa os 71% do PIB, a sua economia está longe dos fulgurantes anos em que chegou a crescer no campo dos dois dígitos (com o maior salto a ser registado em 2007, após crescimento de 23,19% do PIB) e cresceu apenas 0,72% em 2017. A juntar a isso, está o facto de o petróleo representar mais de 90% das exportações angolanas — uma situação explosiva, já que o contexto é de produção abaixo do esperado e de uma constante queda dos rendimentos do petróleo. Segundo o Banco Mundial, as receitas petrolíferas caíram de 23,8% em 2014 para 8,2% em 2016. Segundo o Banco Mundial, espera-se que em 2018 o petróleo venha a representar apenas 10,1% da economia e que a economia não cresça muito para lá dos 2%.
Por isso, nunca é demais salientar: Angola precisa de dinheiro e de investimento.
E é por isso que João Lourenço tem procurado tanto uma coisa como outra a cada viagem que faz fora do país. À primeira vista, estes esforços não têm sido em vão. Ainda este mês, a petrolífera francesa Total, que é a maior operadora do setor em Angola, anunciou novos investimentos para aumentar a produção. E, em outubro, João Lourenço voltou da China com um empréstimo de 2 mil milhões de dólares.
Porém, cada um destes dois exemplos demonstra no fundo duas más notícias. A primeira é a de que Angola tarda em conseguir investimentos no seu país que não sejam no petróleo, estando ainda a uma enorme distância da proverbial diversificação da economia para lá do petróleo. A segunda é a de que, segundo Alex Vines explicou em entrevista ao Observador, a China impôs condições naquele empréstimo que implicam a utilização de parte daquele dinheiro para pagar dívidas do Estado angolano a empresas chinesas. Além disso, aumenta a já significativa dependência angolana da China — elevando a dívida de Luanda a Pequim para os 23 mil milhões de dólares.
Ricardo Soares de Oliveira refere que João Lourenço “tem sido incansável” na procura de novos investidores para lá dos chineses: seja junto de outros países do Ocidente, como da Índia ou da África do Sul; ou com instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), com o qual Angola se encontra a negociar um programa de assistência técnica.
O académico de Oxford explica que esta tentativa de João Lourenço mostrar o lado bom de Angola ao mundo é uma mudança em relação ao que foram os últimos anos de José Eduardo dos Santos, em que se intensificou a dependência de dinheiro chinês. “O facto de José Eduardo dos Santos não querer entrar em acordo com o FMI e o desejo de não ter maior transparência na gestão da economia — o que facilitou o fartar vilanagem, especialmente no verão de 2017 — tornou Angola ainda mais dependente da China e dos seus empréstimos”, adianta Ricardo Soares de Oliveira.
E onde entra Portugal nesse lote? Na entrevista ao Expresso, João Lourenço disse: “Vamos procurar cativar os investidores privados portugueses em todas as áreas onde for possível. Ali onde os investidores portugueses entenderem que podem ganhar dinheiro e deixar bens e serviços, nós agradecemos. Mas estou a referir-me a investidores e não a comerciantes, não aqueles que queiram apenas vender coisas a Angola”.
Também ao Expresso, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, deu a entender que o tema de investimento português em Angola vai estar na agenda da visita de João Lourenço a Portugal, que inclui a passagem por uma reunião do Fórum Empresarial Angola-Portugal, no Porto. “Temos de passar a olhar para Angola como um mercado vastíssimo para um relacionamento em todas as áreas”, disse o chefe da diplomacia portuguesa àquele jornal. Um dos setores em destaque será o da agricultura. Segundo o Expresso, a visita de João Lourenço contará com uma passagem pelo Instituto Agrícola e Veterinário, com a presença dos ministros da Agricultura dos dois países.
… e de pé atrás com Portugal?
Se agora se fala da possibilidade de mais e novos negócios entre Portugal e Angola é porque a relação entre os dois países atravessa um período de aparente acalmia, depois do período conturbado motivado pelo processo do ex-vice-Presidente Manuel Vicente.
Em 2017, o antigo número dois de José Eduardo dos Santos e homem forte da Sonangol foi acusado pela justiça portuguesa de corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documento. Seguiu-se um período de crispação de relações entre os dois países, que apenas terminou em junho deste ano, com a decisão da justiça portuguesa de passar o processo para a sua congénere angolana. Com a queda deste entrave, que António Costa cunhou de “irritante”, as relações entre os dois países passaram para uma nova fase. Um mês depois, António Costa anunciava visita oficial a Angola — e quando este lá chegou, foi a vez de João Lourenço anunciar que ia também a Portugal.
Ao Observador, Fernando D’Oliveira Neves, embaixador de Portugal em Angola entre 2001 e 2003, olha para as relações entre os dois países com “otimismo”. “A ligação de Portugal e Angola é muito forte e conta com muitos fatores, desde logo porque a elite que manda em Angola tem uma ligação muito forte, até familiar, a Portugal”, diz o diplomata na reforma.
Ainda assim, referindo que no caso de Manuel Vicente houve “alguma sobranceria” da parte de Lisboa, o embaixador Fernando D’Oliveira Neves prevê que o caminho pela frente, nomeadamente no que diz respeito a hipotéticos investimentos portugueses em Angola, terá alguns sobressaltos. “Há sempre por parte dos angolanos uma tentativa de demonstrar que não dependem de nós”, diz. Apesar disso, sublinha: “É uma ligação que temos de alimentar”.
Porém, mesmo depois de ultrapassado o “irritante”, há um tema que pode levantar problemas: as dívidas de Angola a empresas portuguesas. Tanto que o valor em falta não é consensual: da parte de Portugal reclama-se entre 400 a 500 milhões, ao passo que Angola reconhece apenas 200 milhões que estarão por pagar.
Marcolino Moco entende que estas diferenças são naturais. “Muitas vezes as dívidas que resultam daquele regime opaco que nós tivemos têm de ser bem vistas, porque o regime deixou o país num sítio difícil. Tem que haver algum cuidado compreensível para se efetuar alguma verificação da veracidade de todas as dívidas”, sublinha o ex-primeiro-ministro angolano.
Ainda assim, mesmo com este problema por resolver, Ricardo Soares de Oliveira prevê uma receção calorosa a João Lourenço por parte de “uma grande fatia das elites portuguesas”. Porém, essa possibilidade não se deve a João Lourenço, mas antes a esses segmentos apontados pelo académico de Oxford, que lhes deixa várias críticas.
“Até 2017, as vozes mainstream em Lisboa diziam que a governação de José Eduardo dos Santos era uma maravilha e que ele era um grande estadista de ambição desenvolvimentista. As mesmas vozes agora apoiam João Lourenço em toda a linha, apesar de ele ter uma avaliação do tempo de José Eduardo dos Santos absolutamente destrutiva, a nível da gestão da economia, da agricultura, da indústria, das infraestruturas, etc. Estas pessoas não podem ter razão ontem e hoje”, aponta Ricardo Soares de Oliveira. “Se um dia João Lourenço sair mal do poder, Lisboa condena o presidente João Lourenço e glorifica quem vier a seguir.” OBSERVADOR