Na sua intervenção no III Congresso da Angolanística a decorrer em Lisboa, Rui Verde referiu que o Presidente chinês e a sua administração "têm desenvolvido um aturado e intenso combate à corrupção no seu país".
E recordou que a lei chinesa em vigor sobre a corrupção encontra-se no Código Penal da República Popular da China aprovado em 1981, revisto em 1997 e reforçado, pelo menos, em 2015 e 2021.
Pelo que, de acordo com essa norma, todas as atividades que "envolvam corrupção relativas a governantes estrangeiros são crime para os quais os tribunais chineses têm jurisdição".
Assim, "desde 01 de maio de 2011 é crime o pagamento ilícito a oficiais estrangeiros".
Por isso, "atualmente, o Código Penal chinês atua para além das suas fronteiras, por isso pagamentos corruptos, a 'dívida odiosa', já têm de ser considerados pelas autoridades chinesas quando fazem as suas avaliações das situações", defendeu.
"Quer isto dizer que por razões de direito interno, a China está obrigada e deve analisar a dívida que tenha sido eventualmente constituída com propósitos corruptos ou de benefício ilegítimo", afirmou.
E neste contexto "a dívida de Angola deve ser revista exaustivamente, nessa perspetiva", advogou.
Por essa razão acredita que este "tipo de dívida deverá ser objeto de um procedimento especial consensual entre a China e Angola que obedeceria a várias fases”, que descreveu sumariamente.
Numa primeira fase, seguindo a tese do jornalista e ativista angolano Rafael Marques e de Thomas Duesterberg, uma auditoria consensual à dívida deveria ser feita por uma entidade escolhida pela China e Angola.
Depois, de acordo com o que essa auditoria estabelecesse, a parte que se considerasse de dívida desviada dos fins públicos deveria ver o seu pagamento suspenso e iniciado um processo colaborativo de recuperação de ativos.
Nesse âmbito, os ativos que fossem recuperados deveriam ser entregues à China.
Finalmente, em relação àquela parte da dívida para a qual não fossem encontrados ativos para pagamento, "seria criado um comité arbitral para decidir o seu destino, quer a anulação, pagamento dilatado no tempo de forma secular ou outra medida mitigadora", concluiu.
Tudo isto, recordou, porque no verão de 2022, a Procuradoria-Geral da República (PGR) em Angola produziu um intenso despacho de acusação criminal contra alguns dos mais relevantes dignitários dos tempos do Presidente José Eduardo dos Santos (1979-2017) como os generais Manuel Vieira Dias Júnior “Kopelipa” e Leopoldino do Nascimento (“Dino”), salientou o investigador de Oxford.
"Curiosamente, o referido despacho introduzia também como principal ator dos alegados crimes, Manuel Vicente, antigo vice-presidente da República, embora aparentemente respeitando uma suposta imunidade [que entendemos sempre que não se verificaria] e não o englobava no rol de arguidos", acrescentou.
Na essência, contudo, "percebe-se que aparentemente debaixo da coordenação e supervisão de Manuel Vicente, que em Angola foi respetivamente presidente do conselho de administração da Sonangol, ministro de Estado da Coordenação Económica e vice-presidente da República (1999-2017) se arquitetou uma fórmula sofisticada segundo a qual uma boa parte dos empréstimos e pagamentos da China para fins públicos foram apropriados por entidades privadas", afirmou Rui Verde.
Essa arquitetura legal e financeira terá assentado na criação de empresas privadas angolanas, com alguma participação de entidades chinesas, como a China Sonangol ou o Chinese Investment Fund (CIF) pelas quais terão saído avultados montantes para pessoas privadas, quando objetivamente os fundos deviam ter sito transmitidos para o erário ou companhias da esfera pública, explicou.
“Contas por alto só nesse processo podem chegar a mais de dois mil milhões de dólares desviados dos objetivos de interesse público para apropriação privada", estimou.
Nos termos dos dados do Banco Nacional de Angola (BNA) no final de 2022 o ‘stock’ da dívida púbica de Angola à China era de cerca de 20 mil milhões de dólares (18,37 mil milhões de euros), de longe a maior.
Rafael Marques e Thomas Duesterberg esclarecem que a dívida à China “representa cerca de 40% de todo o ‘stock’ da dívida externa pública” e que “o serviço desta dívida absorve quase metade do orçamento anual de Angola", sublinhou Rui Verde.
“Consequentemente, temos uma elevada dívida pública angolana à China, acerca da qual se pode estimar como provável que 50% foi apropriada de modo fraudulento por entidades privadas e não públicas", realçou.
“Deve Angola pagar à China a parte da dívida pública que foi ‘privatizada’ ilicitamente?" questionou.
Como no caso da China e Angola não se está “perante mudanças de regime, sucessões de Estado ou sequer repúdio de débitos anteriores”, tem de se “sair do âmbito da estrita teoria do 'débito odioso' e encontrar outras pistas", considerou.
No caso da parte da dívida angolana à China, que "foi apropriada ilicitamente por entidades privadas verifica-se certamente uma das condições: a que a finalidade do empréstimo foi contrária aos interesses da população em geral”, apontou
“Mais difícil é provar que a China no momento da emissão dos empréstimos tinha conhecimento que o mesmo não ia ser aplicado em fins lícitos", acrescentou.
Segundo Rui Verde, a história das relações sino-angolanas depois de 2002 "até certo ponto assentou numa certa privatização do Estado angolano, fragmentado por anos de guerra civil".
E os atores principais da aproximação angolana "foram intermediários como Pierre Falcone ou Helder Bataglia, o que permitiu, desde logo pela parte angolana a criação da confusão entre operações soberanas e operações privadas", explicou.
"Contudo, da parte chinesa a situação é mais ambígua. Se é verdade que surgem instituições oficiais como o Exim Bank da China também aparecem figuras chinesas que não se percebe se são oficiais ou meros agentes privados. O exemplo mais significativo é de Sam Pa, que tanto é identificado como homem de negócios como membro dos serviços de segurança chineses, nunca se entendendo bem em que posição atua", referiu.
Nessa medida, defendeu: "A posição chinesa acaba por criar ou permitir ambiguidades que foram exploradas pelos entes privados em seu benefício próprio".