Ao repartilhar a publicação num grupo do partido, esta foi recebida com uma série de comentários elogiosos: “Papá chegou, agora já haverá pitéu”, “São muitas as saudades, só valorizamos o que temos depois de perdermos” e “O povo está muito feliz com a sua chegada” foram algumas das reações.
Nas redes sociais, multiplicam-se as boas-vindas ao homem que liderou os destinos do país durante quase 40 anos e que nos últimos dois havia caído em desgraça — exilado em Espanha e removido da liderança emérita do partido, assistia de longe à multiplicação de casos na justiça contra alguns dos seus filhos como Filomeno dos Santos (condenado a pena de prisão e a aguardar recurso) e Isabel dos Santos (constituída arguida num outro processo). Agora, José Eduardo dos Santos regressa a uma Angola diferente, desiludida com o Presidente João Lourenço e marcada por uma crise social e um clima de tensão.
O contexto — a que se somam o congresso do MPLA marcado para dezembro deste ano e as eleições gerais alinhavadas para o próximo ano — pode ter ajudado a ditar o timing deste regresso (que, por enquanto, será oficialmente apenas de um mês). Em cima da mesa, estão diferentes razões que podem ter motivado o regresso de JES: razões puramente privadas, como a participação no noivado do filho Joess ou o simples desejo de ver a sua terra; uma tentativa de remendar as relações com João Lourenço e, quem sabe, aliviar a situação dos filhos Filomeno e Isabel; ou até um envolvimento político mais profundo na vida do partido.
O antigo primeiro-ministro de Angola Marcolino Moco sublinha ao Observador que é impossível saber ao certo qual destas razões orienta “Zédu” e garante que nem figuras bem colocadas como ele podem dar certezas: “Por duas vezes tive conversas com o Presidente sobre esta questão, mas ele desviou-se sempre para assuntos menores”, conta a partir do Huambo. “Para mim, a melhor hipótese era ele ter vindo para regularizar a situação”, diz o histórico do MPLA, que considera que as más relações entre o “Presidente emérito” e o atual demonstram que a transição política não foi bem conseguida.
Já o jornalista especialista em Angola e diretor do Africa Monitor, Xavier de Figueiredo, não tem dúvidas: “Para mim, esta viagem tem motivações políticas”, afirma com convicção ao Observador. Uma avaliação que figuras bem colocadas dentro do MPLA como Mário Pinto de Andrade, secretário para os Assuntos Políticos e Eleitorais do Bureau Político do partido, insistem em desvalorizar: “Nós angolanos temos de nos habituar a que o Presidente José Eduardo dos Santos entre e saia quando quiser do país, como qualquer cidadão”, diz ao Observador, frisando que para si ali não há assunto. “Acha que um Presidente que saiu por sua vontade tem problemas em voltar? José Eduardo dos Santos esteve fora o tempo que quis e decidiu regressar no seu timing.” Um timing em que, ao contrário do que provavelmente aconteceria há dois anos, JES é recebido com elogios por muitos angolanos que dizem agora que “no seu tempo” a situação era melhor do que a atual, com João Lourenço.
JES aterrou no Aeroporto 4 de fevereiro em Luanda esta terça-feira, às 17h30. Viajou a bordo de um Falcon 7X fretado pela presidência angolana, o que deixa claro que João Lourenço sabia do seu regresso — contudo, o Presidente não esteve presente para o receber, já que estava no Cuanza Norte numa viagem oficial. Segundo o jornal Expresso, tinha à sua espera Paulo Pombolo, secretário-geral do MPLA, e uma comitiva de amigos próximos, onde se incluíam o seu antigo chefe dos serviços de informações (o general José Maria) o seu antigo chefe de gabinete Nito Cunha e o amigo e embaixador Brito Sozinho. Bem como o filho José Filomeno que, de acordo com o mesmo jornal, lhe terá dito à chegada “o pai não deveria ter vindo”.
Mas foi. JES seguiu para a sua residência em Miramar, onde deverá ficar durante um mês, de acordo com o Jornal de Negócios. Segundo garantiu Xavier de Figueiredo ao Observador, a residência de Miramar tem assistido a uma “romaria” de visitas ao longo dos últimos dias, constituída sobretudo por elementos da “ala eterna” do MPLA que se mantêm fiéis ao antigo Presidente. O que é dito nas conversas que acontecem dentro da casa de JES não é público — mas Figueiredo acredita que há uma série de “eduardistas” que estarão a tentar convencer o Presidente emérito a assumir uma posição de força no próximo congresso do partido, em dezembro. E, para o jornalista conhecedor dos meandros do poder em Luanda, “Zédu” não será alheio a isso.
O contexto em que o antigo Presidente regressa ao seu país é fulcral para entender as possíveis ambições políticas de JES. O país está assoberbado por uma crise económica e social. Em recessão, a população enfrenta uma crescente carestia de vida e um nível de desemprego acima dos 30%. A pandemia da Covid-19 agravou a frágil situação e o Sindicato dos Médicos já alerta para uma possível sobrelotação das morgues na próxima época das chuvas.
Ao mesmo tempo, o país discute a Lei Eleitoral que irá regular os atos do próximo ano, com João Lourenço a quebrar a promessa de realizar as primeiras autárquicas da História do país em 2022. E a oposição vive um momento de fôlego: a UNITA lidera uma aliança de partidos da oposição, formada para as eleições do próximo ano, que promete dar luta ao MPLA e organiza manifestações que reúnem multidões, como a que ocorreu no passado sábado em Luanda.
“Em Luanda há agora duas pessoas muito populares: Adalberto Costa Júnior, líder da UNITA, e José Eduardo dos Santos”, resume Xavier de Figueiredo. “E isso tem a ver com a comparação que as pessoas comuns fazem daquilo que era o tempo dele, em que apesar de tudo as condições de vida estavam melhores. Tudo se agravou ultimamente e há muita tensão política, há um crescimento da UNITA muito grande e dentro de um movimento de aglutinação de vários setores da sociedade.”
“Pasme-se que há um gabinete de Agitprop, cujos atos andam por aí. O que é paradoxal é que com essa posição descabida e incoerente, a oposição vai ganhando mais apoios. Embora tristemente num ambiente de caos”
Uma tensão que, para Marcolino Moco, é acicatada pela própria presidência de João Lourenço: “Pasme-se que há um gabinete de Agitprop, cujos atos andam por aí”, diz, referindo-se a campanhas como a que lançou a dúvida sobre a nacionalidade do líder da UNITA. “O que é paradoxal é que com essa posição descabida e incoerente, a oposição vai ganhando mais apoios. Embora tristemente num ambiente de caos”, lamenta-se o antigo primeiro-ministro, que foi demitido do cargo em 1996 por José Eduardo dos Santos e mais recentemente exonerado da Sonangol durante a presidência de João Lourenço, que o havia nomeado.
A popularidade de JES e da própria oposição é, para o diretor do Observatório Político e Social de Angola, Sérgio Calundungo, sinal da “desilusão” que se vive em Angola com João Lourenço: “Nos primeiros anos de mandato a ilusão era muita, porque João Lourenço começou por atacar os grandes tabus: a corrupção e o nepotismo”, diz ao telefone a partir de Angola. “O que está a acontecer é que nos últimos tempos começa a haver sinais preocupantes de que todo esse ímpeto para condenar este tipo de práticas começa a esmorecer”. E isso, combinado com a crise social, abre espaço ao saudosismo pelos tempos do Presidente “Arquiteto da Paz”: “Há um grupo que aproveita para manipular o sentimento popular e dizer ‘nessa altura não era tão mau como agora’”, resume.
Marcolino Moco fala num “ambiente de crispação” que, combinado com a crise social, cria “um descalabro nacional”. “Isso foi provocado por estes dois homens, que não quiseram fazer uma transição suave e são ambos responsáveis pelo que aconteceu”, acusa. É por isso que vários dentro do MPLA alimentam a esperança de que o regresso de JES a Luanda possa servir para que seja enterrado o machado de guerra entre os dois presidentes. Há até quem fale num possível acordo em que Lourenço poderia deixar cair os processos contra Filomeno e Isabel dos Santos.
Especialistas como Xavier de Figueiredo, contudo, mostram-se céticos perante essa possibilidade: “Isso iria apresentar definitivamente João Lourenço como um homem enfraquecido”, garante. O confronto entre os dois agudizou-se com as investigações aos filhos de José Eduardo dos Santos, que não só irritaram o Presidente emérito, como levaram alguns a questionar se esta não é uma “caça às bruxas” dirigida apenas contra os Dos Santos, em vez do grande projeto de combate à corrupção que JLO anunciou.
“Há esta relação de forças entre os dois: no início do novo mandato, José Eduardo dos Santos estava na mó de baixo e João Lourenço tinha índices de popularidade muito elevados; agora Lourenço está em retrocesso”, resume o diretor do Africa Monitor. Só por isso que se explica a tentativa do atual Presidente em conseguir um encontro com o antecessor no Dubai, que não chegou a acontecer. “José Eduardo dos Santos não aceitou e acho que o fez porque já via João Lourenço numa posição de fraqueza”, analisa Figueiredo. “Hoje há uma oposição interna a Lourenço, que é algo que nunca tinha existido no MPLA.”
José Eduardo dos Santos é um político experimentado, que esteve 38 anos no poder e conhece o MPLA por dentro como ninguém. Rejeitou o primeiro avanço de Lourenço, em março, e anunciou que iria regressar ao seu país — a data foi sendo sucessivamente adiada, invocando-se a pandemia de Covid-19. Agora, JES está de volta, a três meses do congresso. E João Lourenço decidiu não ir recebê-lo ao aeroporto. Para Marcolino Moco, tal ação é “um desprezo” que não deveria ter acontecido: “Se tivéssemos um país completamente estabilizado, então poderia entender estes orgulhos pessoais…”, lamenta-se. Na situação atual, diz, é uma “irresponsabilidade”, que “traz ainda mais problemas ao país”.
Já Mário Pinto de Andrade irrita-se com essa especulação e garante que a ausência de João Lourenço não tem qualquer significado político. “Isso não tem qualquer sentido”, diz ao Observador, sublinhando que se tratou apenas de questões de agenda. “Acredito que um dia os dois se vão encontrar no futuro. Não há problema nenhum, a vida política de Angola decorre normalmente.”
“Tudo isto são comportamentos que creio serem reveladores do incómodo que representa a chegada de José Eduardo dos Santos. E esse incómodo está lá porque ele tem capacidade política”
Os analistas, porém, discordam. “Imprevistamente, João Lourenço arranjou uma espécie de presidência aberta no Cuanza Norte e evitou estar em Luanda no momento da chegada de José Eduardo dos Santos”, aponta Xavier de Figueiredo. “Ao mesmo tempo, a publicidade que os órgãos de informação deram à chegada de JES é absolutamente mínima”, acrescenta, dando como exemplo a ausência do tema na abertura do telejornal das 20h da TPA no próprio dia ou a curta notícia publicada sobre o tema no Jornal de Angola.
O diretor de conteúdos da TPA já reagiu a essas críticas, dizendo que se trata de um “critério editorial” do canal de televisão. Sérgio Calundungo fala numa “situação caricata” e diz que o que não é noticiado em Angola é mais revelador do que aquilo que é enfatizado: “Fica-se com a sensação de que havia deliberadamente uma intenção de não se cobrir isto”, afirma. “Tudo isto são comportamentos que creio serem reveladores do incómodo que representa a chegada de José Eduardo dos Santos”, acrescenta Figueiredo. “E esse incómodo está lá, porque ele tem capacidade política.”
Em Luanda, os rumores sobre as intenções de JES circulam à velocidade da luz. Mas os analistas políticos não têm dúvidas em dizer que, se o antigo Presidente resolver ter um papel no Congresso de dezembro, será fulcral. “O regresso pode significar um acordo entre Lourenço e Dos Santos com o objetivo de estabilizar o MPLA”, concedeu Elias Isaac, antigo diretor da Open Society Initiative no país, em declarações à Jeune Afrique. “Mas também pode acicatar as divisões no seio do partido.”
"Quem conhece José Eduardo dos Santos sabe que ele não é de grandes comentários, nem a sua cor preferida se sabe. É um hábil gestor dos silêncios, para o bem e para o mal”
O MPLA atravessa um momento conturbado, com críticas internas já nas eleições das estruturas de base que precedem o congresso. E as eleições de 2022 afiguram-se como umas das mais complicadas de sempre para o partido desde a independência — “Não há dúvidas de que o partido vai para estas eleições mais fragilizado do que em qualquer momento desde 1992”, avisara já em 2020 Ricardo Soares de Oliveira, professor em Oxford e autor de Magnífica e miserável: Angola desde a guerra civil (ed. Tinta da China), destacando como “as pessoas do eduardismo continuam a navegar no mar lourencista”. Tudo se precipita para 2022 como um ano fulcral: será aí também que expira a imunidade presidencial de que JES ainda goza.
“Não só o passado de José Eduardo dos Santos, como as circunstâncias em que parte da sua família está, tornam impossível que se afaste de vez da vida política”, alerta Sérgio Calundungo. “Nestas eleições, o seu nome e a sua conduta vão ser invocados, quer acerca do passado, quer agora”. O diretor do Observatório Político não exclui, por isso, que JES tenha um papel mais ativo neste congresso: “Se ele estiver a ser movido por outros interesses, pode tentar pressionar, graças ao apoio dos que ainda o veem como a melhor solução e suspiram pelo seu passado.”
“Dos Santos já tem alguma idade e creio que não tem nenhuma ambição política”, resume Xavier de Figueiredo, deixando no entanto uma ressalva: “Agora, tem prestígio e esse prestígio cresceu. Tem a capacidade para influenciar o congresso”. E o jornalista arrisca mesmo dizer de que forma, prevendo “o apoio a uma candidatura que rivalize com João Lourenço”. A acontecer, tal seria inédito na história de um partido “de inspiração soviética, com um certo monolitismo”, aponta o diretor do Africa Monitor, sugerindo até o nome de um “proto-candidato”: “É o caso de António Venâncio, um engenheiro que tem prestígio interno. Faz parte desta retaguarda de JES.”
O membro do Bureau Político Mário Pinto de Andrade afasta por completo esses cenários e diz que a preparação do congresso “está a funcionar normalmente”. Instado a comentar sobre se pensa que José Eduardo dos Santos vai marcar presença, Andrade diz que tal é possível: “O MPLA tem a tradição de convidar todos os grandes dirigentes, portanto ele pode estar lá”. Questionado sobre se “Zédu” poderá assumir um papel de destaque, apoiando Lourenço ou abrindo uma fissura no partido, Andrade diz não ter “mais nada a acrescentar”.
Ninguém pode dar a resposta definitiva sobre quais são os planos de José Eduardo dos Santos. O Presidente emérito mantém-se discreto, como foi habitual ao longo da sua vida. Mas certamente não terá perdido as capacidades políticas que lhe permitiram manter-se no poder ao longo de décadas, controlar o partido e acumular fortuna. Calundungo avisa que, por enquanto, resta esperar pelos próximos meses e observar todos os sinais vindos de Miramar: “Quem conhece José Eduardo dos Santos sabe que ele não é de grandes comentários, nem a sua cor preferida se sabe. É um hábil gestor dos silêncios, para o bem e para o mal”, afirma.
Por enquanto, sobram apenas os sinais: o timing do regresso, a ausência de João Lourenço no aeroporto, a falta de cobertura mediática. Com poucas declarações públicas dos intervenientes, a temperatura política em Angola vai-se medindo pelo Facebook: não só pelos que elogiam o regresso do “pai”, mas também com outros gestos, como a recente publicação na página oficial da presidência, publicada esta sexta-feira, que assegura que João Lourenço e José Eduardo dos Santos já falaram ao telefone.
É nesta rede social que todos se pronunciam. Até o engenheiro Venâncio, que saudou entusiasticamente o regresso do Presidente emérito. Numa longa publicação, o membro do MPLA elencou defeitos e qualidades do antigo Presidente e invocou uma lição que lhe diz ter sido dada por “Zédu” e que se aplica como uma luva ao momento instável que vive o MPLA e à relação com João Lourenço: “Com JES aprendi uma coisa extraordinária: nem todos os nossos amigos são amigos; nem todos os nossos inimigos são inimigos”. João Lourenço deve estar a tomar nota. OBSERVADOR