Como Angola ficou nas mãos do MPLA (com a ajuda do MFA e não só)

Post by: 07 July, 2025

Pré-publicação de “Regresso à Europa – A Posição Internacional da Democracia Portuguesa”, livro de Carlos Gaspar onde também se conta como Angola ficou nas mãos do MPLA com a total cumplicidade do MFA

 

Nele, este investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, percorre o período que vai dos últimos anos do anterior regime à consolidação da democracia, analisando o reposicionamento internacional de Portugal e a forma como ele se foi enquadrando na dinâmica de competição entre os Estados Unidos e a União Soviética.

 

O processo de descolonização ocupa naturalmente um lugar central nesta obra, de que hoje publicamos uma passagem, precisamente aquele que se centra naquele curto período que vai do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975, período durante o qual também se determina o futuro de Angola, a ex-colónia que ainda hoje desperta mais debates, e paixões, em Portugal. Eis essa passagem.

 A última fase da transição post-autoritária é dominada por uma escalada paralela na crise revolucionária em Portugal, que culmina com o contragolpe de 25 de Novembro de 1975, e nas crises de descolonização em Angola e em Timor-Leste, que levam à sua internacionalização, com a intervenção das potências externas, incluindo a União Soviética e os Estados Unidos.

Na sequência do 11 de Março, tanto o PS, os partidos democráticos e a Igreja Católica, como os Estados Unidos, os aliados europeus e a República Popular da China, temem a instalação de um regime pretoriano esquerdista em Portugal, que possa pôr em causa a sua permanência na NATO, comprometer a transição post-franquista na Espanha e provocar uma guerra civil no extremo ocidental da Europa. Nas margens da crise portuguesa, o PCI, o PCE e o PCF temem que a estratégia de tomada do poder do PCP em aliança com o MFA contra os partidos democráticos possa pôr em causa a credibilidade da sua vinculação às regras da democracia pluralista e excluir os “eurocomunistas” dos círculos do poder na Europa Ocidental. Pela sua parte, tanto o PCP como os partidos da CONCP e os seus aliados do campo socialista temem que a viragem à esquerda, na transição revolucionária, não dure e possa pôr em causa quer a instalação de um regime neutralista em Portugal quer a transferência de poder para o MPLA em Angola, que é a chave da descolonização, para a linha soviética.

As elites militares portuguesas, de Soares Carneiro a Melo Antunes, consideram o MPLA como o seu parceiro eletivo na descolonização angolana. Ao contrário da FNLA e da UNITA, o MPLA não é uma força tribal e racista nem está dependente de nenhum dos Estados vizinhos de Angola, e os seus principais dirigentes formaram-se em Portugal, onde pertenceram à oposição. Em Lisboa, as autoridades adiam as conversações com os partidos angolanos até Neto conseguir consolidar a sua posição como Presidente do MPLA. Em Luanda, a CCP do MFA de Angola e o Almirante Rosa Coutinho, Presidente da Junta Governativa, neutralizam as forças separatistas brancas para consolidar a posição dominante do MPLA na capital; instalam as forças do MPLA ao lado das forças portuguesas no enclave de Cabinda, ameaçado pelos separatistas da Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC); e transferem para o MPLA as forças katanguesas integradas no dispositivo militar português.

 
As elites militares portuguesas, de Soares Carneiro a Melo Antunes, consideram o MPLA como o seu parceiro eletivo na descolonização angolana. Ao contrário da FNLA e da UNITA, o MPLA não é uma força tribal e racista nem está dependente de nenhum dos Estados vizinhos de Angola, e os seus principais dirigentes formaram-se em Portugal, onde pertenceram à oposição.
 

As autoridades portuguesas não podem ignorar a divisão entre os partidos angolanos, no processo de descolonização, mas a direção política do MFA tem uma clara preferência pelo MPLA, visto que a considera ser a única força que: pode garantir uma linha de continuidade, nas relações entre Portugal e o futuro Estado angolano, incluindo a permanência da comunidade branca; está preparada para travar a FNLA, responsável pelos massacres dos colonos portugueses em 1961; pode defender a independência nacional e a integridade territorial de Angola, incluindo o enclave de Cabinda, perante os Estados vizinhos.

 

Mário Soares na Cimeira do Alvor

A cimeira quadripartida do Alvor é precedida por uma cimeira bilateral em Argel, entre Agostinho Neto e Melo Antunes, e, logo a seguir, em Moscovo, o Presidente do MPLA informa os responsáveis soviéticos de que fez um acordo secreto com o MFA contra a FNLA e que esse apoio lhe garante uma posição única no processo de descolonização. Porém, a FNLA, apoiada pelos Estados Unidos, pela China, pela África do Sul e pelo Zaire, tem uma vantagem militar no terreno, e o MPLA precisa urgentemente da assistência militar dos seus aliados. Em janeiro de 1975, a União Soviética decide renovar o seu apoio ao MPLA e retoma, em grande escala, a sua estratégia de intervenção na crise do Congo em 1961, mobiliza o campo socialista, incluindo Cuba e a RDA, e inicia um programa de formação militar das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) e de transferência de armas para Angola.

As armas soviéticas, assim como os conselheiros militares cubanos, começam a chegar em meados de março para garantir que as forças do MPLA têm condições para contrabalançar as forças da FNLA. No mesmo sentido, tornam possível neutralizar a FNLA em Luanda, onde os combates que se travam nas vésperas do 1.º de Maio confirmam a incapacidade das forças militares portuguesas para separar os partidos rivais e controlar a capital, ao mesmo tempo que se inicia a retração do dispositivo militar, com a retirada gradual de posições em todo o território, incluindo as fronteiras e os principais portos de Angola.

 
As armas soviéticas, assim como os conselheiros militares cubanos, começam a chegar em meados de março para garantir que as forças do MPLA têm condições para contrabalançar as forças da FNLA. 
 

Os Estados Unidos estão mais atrasados. Em finais de abril, Ford e Kissinger recebem Kaunda, que se declara preocupado com a força crescente do MPLA de Agostinho Neto, alinhado com Moscovo. Kinshasa e Lusaka, que apoiam a FNLA – reforçada pelas forças de Daniel Chipenda, entretanto expulso do MPLA –, e a UNITA têm todo o interesse e os meios necessários para enquadrar a descolonização em Angola, tanto mais que o Zaire e a Zâmbia dependem dos caminhos-de-ferro angolanos para garantir o acesso ao Atlântico e a exportação das suas matérias-primas. A China também apoia os dois movimentos angolanos anti-soviéticos, e a África do Sul, cuja posição estratégica e militar é dominante na África Austral, não está preparada para aceitar um regime pró-soviético em Angola, na fronteira com o Sudoeste Africano (Namíbia). Na sequência da visita de Kaunda, Ford aprova uma proposta de Kissinger para aumentar significativamente os apoios à FNLA e à UNITA.

 

Em maio, o MPLA e a FNLA combatem pelo controlo de Caxito, uma posição crítica para controlar o acesso a Luanda. Em junho, na cimeira de Naukuru, Kenyatta reúne pela última vez Neto, Holden Roberto e Savimbi. O acordo tripartido é impossível e, em alternativa, Kaunda e Marien Ngouabi, Presidente do Congo-Brazzaville, defendem uma frente comum do MPLA com a UNITA contra a FNLA. Melo Antunes está preparado para rever os acordos do Alvor, incluindo a formação do Exército único, a partir de uma coligação entre o MPLA e a UNITA, que a OUA considera o vencedor provável das eleições angolanas.

 
O MPLA não está preparado para partilhar o poder com nenhum dos seus rivais e, no dia 9 de julho, passa à ofensiva para assegurar o controlo exclusivo da capital. As forças militares portuguesas não se opõem à ofensiva do MPLA, que expulsa a FNLA e a UNITA de Luanda e torna impossível cumprir os acordos do Alvor.
 

Para o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, o acordo entre os dois movimentos é indispensável, tanto para garantir a transferência pacífica de poderes e evitar a guerra civil e a internacionalização do conflito angolano como para reduzir a dependência de Neto em relação ao bloco soviético, que pode comprometer o futuro das relações entre Portugal e Angola.

 

Porém, o MPLA não está preparado para partilhar o poder com nenhum dos seus rivais e, no dia 9 de julho, passa à ofensiva para assegurar o controlo exclusivo da capital. As forças militares portuguesas não se opõem à ofensiva do MPLA, que expulsa a FNLA e a UNITA de Luanda e torna impossível cumprir os acordos do Alvor.

Na mesma data, em Lisboa, Mário Soares e o PS retiram-se do IV Governo Provisório, cuja continuidade fica posta em causa, mesmo antes do PPD de Emídio Guerreiro seguir os passos do seu parceiro, uma semana depois. A demissão dos ministros socialistas, nas vésperas das manifestações em massa no Porto e na Fonte Luminosa, completa a rutura do PS com o PCP e com Vasco Gonçalves e consolida a sua convergência com Melo Antunes e com a ala mais moderada do MFA, que vai estar na origem do manifesto do “Grupo dos Nove”.

As divergências entre o PS e o PCP acumulam-se desde o I Congresso socialista e da cisão da Frente Socialista Popular (FSP). A Lei da Unicidade Sindical, que reforça o controlo dos comunistas sobre a Intersindical e o movimento sindical, é aprovada por maioria no Conselho dos Vinte e confirma a convergência entre o PCP e as correntes esquerdistas do MFA. O PS e os seus aliados maoístas do PCP (M-L), que controlam o Sindicato dos Químicos, organizam um primeiro comício de massas em Lisboa, contra a unicidade sindical, em que Soares e Salgado Zenha tomam a palavra para criticar os seus parceiros de coligação.

 

No dia seguinte ao 11 de Março o condutor deste carro acabaria por ser morto depois de passar por este conjunto de militares. Acusaram-no de ser "fascista"

Gamma-Rapho via Getty Images

 

O contragolpe de 11 de Março torna evidente a determinação do PCP em tomar o poder com o MFA. A sua estratégia ofensiva confirma-se no dia seguinte às eleições de 25 de abril, quando a Intersindical tenta impedir Soares e o PS de entrar no Estádio 1º de Maio para participar nas comemorações oficiais do Dia do Trabalhador, ao lado do Presidente Costa Gomes, do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves e dos outros partidos de esquerda, incluindo forças sem representação parlamentar, como a Frente Socialista Popular (FSP).

 

As eleições para a Assembleia Constituinte marcam uma viragem crucial na transição post-autoritária, que passa a estar dominada pela tensão entre os princípios opostos da legitimidade democrática e da legitimidade revolucionária. Para impor o seu estatuto político como o principal partido democrático, o PS precisa de isolar o PCP, dividir o MFA e traduzir a sua maioria eleitoral, numa capacidade efetiva de mobilização de massas para pôr em causa a legitimidade revolucionária dos militares no poder. Para impor o seu estatuto como vanguarda revolucionária, o PCP precisa de marginalizar o PS, neutralizar a oposição interna no MFA aos seus aliados da ala gonçalvista e institucionalizar a “Aliança Povo-MFA” para pôr em causa a legitimidade democrática da Assembleia Constituinte e dos partidos parlamentares.

O Conselho da Revolução e a Assembleia do MFA não conseguem definir uma estratégia pretoriana comum e as correntes internas esgotam-se numa “epidemia de planos”, que servem para confirmar as divisões nas elites do MFA.

O Plano de Acção Política, aprovado pelo CR, qualifica o MFA como o “Movimento de Libertação do Povo Português” e quer iniciar um processo de descolonização interno para garantir a independência nacional, através da construção de uma sociedade socialista, por uma “via pluralista”. O Documento-Guia da Aliança Povo-MFA, apresentado pelo Gabinete de Dinamização do Exército (GDE), é aprovado pela Assembleia do MFA, no dia 8 de julho. O documento rejeita qualquer hegemonia externa sobre a revolução portuguesa; defende “o futuro independente de Portugal” assente nas relações com as antigas colónias; e define a criação de uma estrutura de poder nacional em que o Conselho da Revolução passa a ser o “órgão máximo da soberania” e em que as assembleias das unidades militares e as comissões de moradores e de trabalhadores, vão formar, com a vanguarda revolucionária do MFA, uma Assembleia Nacional Popular para deslegitimar a Assembleia Constituinte eleita. O “Documento dos Nove” é escrito por Melo Antunes e os seus primeiros signatários são os nove membros do Conselho da Revolução em rutura com a ala gonçalvista. O documento, publicado no dia 8 de agosto, rejeita tanto o “modelo de sociedade socialista tipo europeu oriental”, como o modelo social-democrata europeu ocidental; define-se contra a “teoria leninista da vanguarda” e defende uma “sociedade socialista”, inseparável da democracia e do pluralismo político, tendo em conta que “o contexto geopolítico e estratégico” de Portugal na Europa, bem como o seu passado e a sua cultura, impedem a separação entre a liberdade e a construção do socialismo. Omisso sobre a NATO, o documento valoriza as relações com a EFTA e as Comunidades Europeias, com o Terceiro Mundo e as antigas colónias, com os países socialistas do Leste europeu e com os países europeus e árabes do Mediterrâneo. O “Documento do COPCON”, assumido por Otelo Saraiva de Carvalho, demarca-se tanto do PCP, alinhado com o bloco soviético, como do “Grupo dos Nove”, que se inclina para a EFTA e as Comunidades Europeias, para defender a independência nacional, assente nas relações com o Terceiro Mundo e as antigas colónias. O documento apresenta a sua própria versão da “Aliança MFA-Povo” e do “poder popular”, incluindo a formação de forças armadas revolucionárias, em que os soldados devem eleger por classes os seus representantes nas unidades militares para defender os seus interesses.

 
Os aliados ocidentais estão divididos: Ford e Kissinger não querem aceitar um “governo marxista” na NATO, mas o Chanceler social-democrata alemão, Helmut Schmidt, assim como o Primeiro-Ministro Wilson – que, como dirigente da oposição trabalhista, tinha exigido a expulsão de Portugal da NATO na sequência do massacre de Wiriyamu –, entendem que não está tudo perdido,
 

As clivagens internas do MFA são acentuadas quer pela estratégia do PCP para excluir os socialistas do bloco de poder político-militar quer pela estratégia do PS para isolar os comunistas e a ala gonçalvista no MFA. Cunhal aceita o Documento-Guia da Aliança Povo-MFA, Soares considera inaceitável que a Assembleia do MFA, presidida por Costa Gomes, possa aprovar um documento que põe diretamente em causa a Plataforma constitucional entre o MFA e os partidos políticos e a própria razão de ser da Assembleia Constituinte. No dia seguinte, os ministros socialistas abrem uma crise governamental, que é prolongada pela impossibilidade de reconstituir uma coligação entre o PS e o PCP e que leva à formação do V Governo Provisório, um governo “não-partidário” chefiado por Vasco Gonçalves, dominado pelo PCP e apresentado pelo Presidente da República como um “governo de passagem”.

 

Em 1975 o presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, e Henry Kissinger não queriam aceitar um “governo marxista” na NATO

Paralelamente, o PS e o PCP mobilizam os seus apoios externos. Os aliados ocidentais estão divididos: Ford e Kissinger não querem aceitar um “governo marxista” na NATO, mas o Chanceler social-democrata alemão, Helmut Schmidt, assim como o Primeiro-Ministro Wilson – que, como dirigente da oposição trabalhista, tinha exigido a expulsão de Portugal da NATO na sequência do massacre de Wiriyamu –, entendem que não está tudo perdido, sobretudo depois da vitória eleitoral do PS e dos partidos democráticos na eleição de 25 de abril.

Mário Soares e o PS podem contar não só com os seus aliados europeus, mas também com o Embaixador dos Estados Unidos em Lisboa. O Embaixador Carlucci defende que a crise portuguesa é uma crise europeia e que, portanto, os Estados Unidos devem reconhecer os dirigentes europeus como os primeiros responsáveis pela sua resolução. No mesmo sentido, Carlucci defende que o apoio aberto de Washington à ameaça separatista da Frente de Libertação dos Açores (FLA) seria extremamente prejudicial para a luta dos seus aliados portugueses contra a ameaça comunista em Portugal.

 
Ford quer expulsar Portugal da NATO e defende que o Conselho do Atlântico Norte deve reconhecer publicamente a importância da contribuição de Espanha para a defesa ocidental, mas os aliados europeus recusam a sua proposta e criticam o Presidente dos Estados Unidos por não ir receber personalidades da oposição espanhola na sua próxima visita a Madrid. 
 

Em maio, no quadro da cimeira do Conselho do Atlântico Norte, os dirigentes ocidentais procuram articular as suas posições sobre a crise portuguesa e a transição espanhola. Schmidt organiza um encontro entre Kissinger e Melo Antunes em que o Secretário de Estado reitera que o interesse dos Estados Unidos em Portugal se resume aos Açores e critica a tendência “terceiro-mundista”, incompatível com a permanência de Portugal na NATO: “Uma coisa é ter uma política externa como a de Boumédiène, outra coisa é ter uma política externa como a de Boumédiène e estar na NATO”.

Ford quer expulsar Portugal da NATO e defende que o Conselho do Atlântico Norte deve reconhecer publicamente a importância da contribuição de Espanha para a defesa ocidental, mas os aliados europeus recusam a sua proposta e criticam o Presidente dos Estados Unidos por não ir receber personalidades da oposição espanhola na sua próxima visita a Madrid. O Chanceler federal, que quer concertar o apoio ocidental ao PS, às forças democráticas e aos militares moderados, diz ao Presidente norte-americano, num encontro bilateral, que não está preparado para admitir um cenário de secessão dos Açores, que

é a fronteira da Europa Ocidental com os Estados Unidos no Atlântico. Schmidt diz a Ford que a prioridade dos Estados Unidos deve ser impedir uma intervenção direta da União Soviética em Portugal.

 

A linha alemã, que prevalece na estratégia ocidental, é politicamente inovadora na contenção de uma ameaça revolucionária inédita no quadro da NATO. Desde a primeira hora, as fundações partidárias alemãs, nomeadamente a Fundação Friedrich Ebert, ligada ao SPD, são decisivas na construção dos partidos democráticos portugueses e estão na origem da formação das fundações partidárias portuguesas, que recebem os financiamentos externos indispensáveis para sustentar a sua luta política e sindical.

Na Conferência de Helsínquia, os principais dirigentes ocidentais – Ford, Schmidt, Wilson e o Presidente Valéry Giscard d’Estaing – pressionam concertadamente o Secretário-Geral do PCUS para lhe transmitir que a estratégia soviética na revolução portuguesa é incompatível com a détente, institucionalizada pela Ata Final assinada em Helsínquia, a 1 de agosto de 1975. No dia seguinte, em Estocolmo, Mário Soares reúne-se com Olof Palme, Willy Brandt, Harold Wilson, Bruno Kreisky, Yitzhak Rabin, Joop van den Uyl e Mitterrand, numa cimeira em que os principais dirigentes da Internacional Socialista formam o Comité de Amizade e Solidariedade para a Democracia e o Socialismo em Portugal. O Grupo dos Seis – Brandt, Palme, Wilson, Kreisky, van den Uyl e Mitterrand – dirige o Comité de Estocolmo, que transforma a crise portuguesa numa crise da détente europeia e mobiliza os partidos no poder na Alemanha, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Holanda e na Áustria para apoiar o PS.

A fase final da descolonização coincidiu com a realização da Conferência de Helsínquia, que consagrou os princípios da “détente”

A convergência estratégica entre os Estados Unidos e os aliados europeus está na origem de um Grupo Quadripartido da NATO (QUAD) entre os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a República Federal e a França – mais tarde conhecido como o QUAD transatlântico – que se forma para tratar da crise portuguesa, primeiro a níveldos diretores políticos dos Ministérios de Negócios Estrangeiros e, depois, a nível dos ministros, com a presença de Kissinger, Callaghan, Genscher e Jean Sauvagnargues, Ministro dos Negócios Estrangeiros da França.

Pela sua parte, Cunhal e o PCP podem contar com o apoio do PCUS, do SED e do Partido Comunista da Checoslováquia e com a oposição do PCI, do PCE e até do PCF, cujas credenciais democráticas ficam postas em causa pela estratégia revolucionária em Portugal. O Secretário-Geral do PCE, Santiago Carrillo, apoia abertamente o PS e, em agosto, Konstantin Zarodov, diretor da Revista Internacional de Praga, abre uma polémica contra os “eurocomunistas”, em que opõe a “revolução ininterrupta” ao respeito pelas instituições da “democracia burguesa”, as “maiorias políticas” revolucionárias às “maiorias aritméticas” parlamentares e a “hegemonia da vanguarda” comunista às alianças com os socialistas.

 
Na crise portuguesa, a divisão dos partidos comunistas europeus contrasta com a unidade dos partidos socialistas e sociais-democratas e as tensões no bloco soviético aumentam com a escalada na ofensiva do PCP, que consolida a convergência no campo ocidental.
 

O Partido Comunista da Roménia, e até o Partido Operário Unificado da Polónia, marcam a sua distância em relação à estratégia do PCP, que perturba a política de détente europeia. Pela sua parte, tal como na crise angolana, Moscovo procura manter-se numa segunda linha e nenhum responsável soviético defende uma intervenção militar na crise revolucionária portuguesa, que seria um casus belli com os Estados Unidos e os aliados europeus, uma vez que Portugal continua a ser membro da NATO.

Na crise portuguesa, a divisão dos partidos comunistas europeus contrasta com a unidade dos partidos socialistas e sociais-democratas e as tensões no bloco soviético aumentam com a escalada na ofensiva do PCP, que consolida a convergência no campo ocidental.

A quarta crise da transição post-autoritária, que começa com a última Assembleia do MFA em Tancos e termina com a tentativa de golpe de 25 de Novembro, é inseparável da crise de descolonização angolana, que se internacionaliza irreversivelmente, a partir da intervenção militar da África do Sul e da suspensão dos acordos do Alvor. Esta crise culmina com a intervenção sovieto-cubana, que precede a declaração de independência de Angola pelo MPLA em Luanda, no dia 11 de novembro, e que se prolonga para lá da retirada das forças zairotas e sul-africanas.

 

Em setembro, a ala moderada que se forma à volta do “Grupo dos Nove” confirma a sua preponderância no Exército e na Força Aérea, nas assembleias dos três ramos das Forças Armadas, convocadas para se pronunciarem sobre a proposta de Costa Gomes, que quer substituir Vasco Gonçalves como Primeiro-Ministro para o nomear CEMGFA, a posição decisiva na hierarquia militar ocupada pelo Presidente da República. No dia 5 de setembro, a Assembleia do MFA, onde o Exército e a Força Aérea se fazem representar pelos respetivos Chefes de Estado-Maior, rejeita a proposta de nomeação do Brigadeiro Vasco Gonçalves como CEMGFA – denunciada por Soares como uma “afronta direta à NATO” – e inicia a reestruturação do Conselho da Revolução.

Melo Antunes é a figura determinante em todo o processo de descolonização

No Conselho, a ala gonçalvista fica reduzida à representação da Armada (três membros) e perde a maioria para o “Grupo dos Nove”, que domina a representação do Exército (seis membros) e da Força Aérea (três membros). As inerências incluem o Presidente da República, o Primeiro-Ministro militar, o CEMGFA, o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), o Chefe de Estado-Maior do Exército (CEME), o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA) e o Comandante de COPCON; os membros do Conselho que são ministros podem acumular funções. Eurico Corvacho perde o seu lugar no Conselho e é substituído como Comandante da Região Militar do Norte por Pires Veloso, enquanto Franco Charais e Pezarat Correia, que permanecem no Conselho, continuam a comandar as Regiões Militares do Centro e do Sul, respetivamente: só o Comando da Região Militar de Lisboa, que Otelo Saraiva de Carvalho acumula com o COPCON, escapa à nova maioria do Conselho da Revolução.

A Assembleia do MFA não se volta a reunir. As mudanças no Conselho da Revolução são anunciadas no dia 18 de setembro e, no dia seguinte, o VI e último Governo Provisório toma posse. O Almirante Pinheiro de Azevedo é o novo Primeiro-Ministro e está acompanhado por sete ministros militares, incluindo Melo Antunes, Vítor Alves e Vítor Crespo, e por sete ministros civis, em representação do PS (quatro membros), do PPD (dois membros) e do PCP (um membro). A representatividade eleitoral é tida em conta na composição do Governo para confirmar a convergência entre o PS e a ala moderada do MFA: pela primeira vez, o princípio da legitimidade democrática é reconhecido em pé de igualdade aritmética com o princípio da legitimidade revolucionária.

 
O impasse no conflito entre as instituições oficiais e o movimento revolucionário cria uma situação clássica de “duplo poder” – a fórmula de Trotsky para descrever a situação revolucionária na Rússia dos governos provisórios, em 1917
 

O COPCON de Otelo Saraiva de Carvalho sobrevive e torna-se o epicentro da mobilização revolucionária do PCP e da maioria dos grupos de extrema-esquerda, federados na Frente Unida Revolucionária (FUR), que vai paralisar as instituições, numa escalada de violência até ao golpe de 25 de Novembro. A Embaixada de Espanha é assaltada pela FUR, perante a passividade do COPCON; as fações esquerdistas civis e militares estão na primeira linha da formação dos Soldados Unidos Vencerão (SUV), que subvertem a hierarquia militar; o PCP e a Intersindical comandam o cerco à Assembleia Constituinte, que termina com a expulsão dos deputados do Palácio de S. Bento, sem intervenção do COPCON; o Primeiro-Ministro fica bloqueado na sua residência oficial; e o Terreiro do Paço está ocupado, à vez, por manifestações da FUR, da Intersindical, da Cintura Industrial de Lisboa, dos SUV e por manifestações do PS, do PPD e dos seus aliados da extrema-esquerda.

O impasse no conflito entre as instituições oficiais e o movimento revolucionário cria uma situação clássica de “duplo poder” – a fórmula de Trotsky para descrever a situação revolucionária na Rússia dos governos provisórios, em 1917. A paralisação em Lisboa força o último Governo Provisório e a Assembleia Constituinte a partir para o Norte. O COPCON, a ala gonçalvista e os seus aliados do PCP e da FUR preparam-se para tomar o poder na capital, enquanto se organiza o comando operacional do “Grupo dos Nove”, chefiado pelo Tenente-Coronel Ramalho Eanes, que se prepara para o contragolpe.

(…)

O contragolpe do 25 de Novembro marca o fim do MFA e da transição revolucionária, tarde demais para conter a internacionalização das crises de descolonização em Angola e em Timor-Leste, onde as forças exógenas se revelam decisivas, ao contrário da crise portuguesa, onde prevalecem as forças endógenas.

 
GettyImages-1184756539

Portugueses em Luanda a tentar recuperar o seu dinheiro antes de regressarem a Portugal

As últimas decisões relevantes das autoridades portuguesas sobre a descolonização angolana são tomadas em agosto. Costa Gomes toma a iniciativa de organizar, com o apoio dos Estados Unidos, a ponte aérea humanitária que vai trazer dezenas de milhares de refugiados, sobretudo colonos brancos, para Portugal, enquanto Vasco Gonçalves suspende os acordos do Alvor e deixa aberto o caminho para a internacionalização do conflito, acelerada pela intervenção das forças militares sul-africanas e cubanas em Angola.

Em agosto, a crise da descolonização torna-se uma crise internacional, cujo resultado é decidido no quadro da competição estratégica entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ironicamente, na sua última reunião em Helsínquia, nem Ford nem Brezhnev tratam desta questão: o Presidente dos Estados Unidos, que acaba de decidir mais um aumento do apoio à FNLA e ao Zaire, está confiante na vitória dos seus aliados locais, tal como o Secretário-Geral do PCUS, que escolheu melhor os seus aliados e cujos relatórios confirmam o controlo de Luanda, de Cabinda e dos principais portos angolanos pelo MPLA.

 
Em Havana, Fidel Castro, Primeiro-Secretário do Partido Comunista de Cuba, recebe a visita de Otelo Saraiva de Carvalho, que defende o envio de tropas regulares cubanas para apoiar o MPLA. O Estado-Maior está a finalizar os planos militares para a intervenção em Angola e as forças armadas cubanas preveem a organização de uma ponte aérea.
 

Em Pretória, o Primeiro-Ministro Vorster decide aumentar o apoio à FNLA e à UNITA, enquanto as tropas das Forças de Defesa Sul-Africana (SADF) ocupam as instalações hidroelétricas angolanas, na fronteira com o Sudoeste Africano, desde o princípio de agosto. Em Havana, Fidel Castro, Primeiro-Secretário do Partido Comunista de Cuba, recebe a visita de Otelo Saraiva de Carvalho, que defende o envio de tropas regulares cubanas para apoiar o MPLA. O Estado-Maior está a finalizar os planos militares para a intervenção em Angola e as forças armadas cubanas preveem a organização de uma ponte aérea, com o apoio indispensável da União Soviética, para transportar as tropas de elite do Ministério do Interior para Luanda, onde centenas de conselheiros militares cubanos estão, desde há vários meses, a enquadrar e a treinar as FAPLA.

No dia 14 de outubro, a África do Sul invade Angola, no início da Operação Savana/Savannah. As forças sul-africanas organizam duas colunas separadas, com mil soldados das SADF: a coluna Zulu, que integra forças da SADF, da FNLA de Chipenda e antigos Flechas – os soldados angolanos do Exército português –, vai avançar desde a fronteira da Namíbia até ao Lobito, depois de ocupar Sá da Bandeira e Moçâmedes; e a coluna Foxbat, que se forma em Silva Porto, com forças da SADF e da UNITA, vai avançar para Malange, para o Luso e para o Lobito. Ambas têm como objetivo final chegar a Luanda.

 

Cubanos em Angola: o pedido feito por Otelo a Fidel Castro para que tropas cubanas fossem ajudar o MPLA foi decisivo para que a União Soviética apoiasse a operação

 

A invasão sul-africana não só compromete a posição da China, que vai suspender o seu apoio à FNLA e à UNITA, como fortalece a posição do MPLA na OUA e, de certa maneira, legitima o seu pedido para a intervenção de Cuba, na ausência de uma alternativa africana. As forças cubanas estão preparadas para intervir, mas têm de esperar pela decisão soviética. No dia 3 de novembro, Moscovo informa Havana que decidiu que vai reconhecer a declaração de independência da República Popular de Angola e, no dia seguinte, Castro ordena o início da Operação Carlota e a ponte aérea soviética, com escalas nos Açores e na Guiné-Conacri, começa a transportar as tropas cubanas para Luanda, que chegam à capital angolana antes do dia 11 de novembro e partem de imediato para as linhas da frente.

 

No dia 10 de novembro, a ofensiva contra Luanda da FNLA, apoiada por forças zairotas, é travada pelas FAPLA e pelas forças especiais cubanas em Quifangondo. No dia seguinte, Neto declara a independência da República Popular de Angola, que é reconhecida pela União Soviética, por Cuba e pelos Estados do bloco soviético, assim como pelos novos Estados que se formaram nas colónias portuguesas. Portugal não reconhece o regime do MPLA. No dia 13 de novembro, as forças sul-africanas tomam Novo Redondo, a 250 km de Luanda, mas as forças cubanas travam o avanço da coluna Zulu para Porto Amboim com a destruição das pontes do rio Queve e param a coluna Foxbat antes desta chegar à Gabela.

A União Soviética garante o reforço permanente das forças cubanas com novas tropas e com armas pesadas, incluindo carros de combate, artilharia e caças. A pressão diplomática dos Estados Unidos, que se declaram surpreendidos quer pela intervenção sul-africana quer pela intervenção sovieto-cubana, pôde interromper a ponte aérea, durante um breve intervalo, em dezembro. Mas os seus esforços para forçar a retirada das forças cubanas ficam comprometidos com a retirada sul-africana, em 19 de dezembro.

 
"Estava eu muito bem a dormir e vêm-me falar de Portugal, sobre o qual nada sei. Depois dizem-me que Costa Gomes queria visitar a União Soviética. Eu recebi-o, podem ver o comunicado. Dei-lhe comércio. Fazemos comércio com muitos países. Quanto ao chefe do PCP, Álvaro Cunhal, nunca o vi na minha vida”.
Resposta de Brejnev a Kissinger
 

Em nome da détente, Kissinger pressiona Moscovo para forçar a retirada cubana e regressar a uma fórmula de partilha do poder entre os três partidos angolanos. Mas, em 16 de janeiro de 1976, a União Soviética e Cuba assinam um novo acordo militar, que institucionaliza a sua cooperação estratégica em Angola. Três dias depois, em Moscovo, num encontro entre Brezhnev e Kissinger, o Secretário de Estado norte-americano tenta fazer um linkage entre as conversações sobre os acordos SALT II e a crise angolana. O Secretário-Geral soviético recusa discutir a crise angolana e responde com uma referência à revolução portuguesa: “Estava eu muito bem a dormir e vêm-me falar de Portugal, sobre o qual nada sei. Depois dizem-me que Costa Gomes queria visitar a União Soviética. Eu recebi-o, podem ver o comunicado. Dei-lhe comércio. Fazemos comércio com muitos países. Quanto ao chefe do PCP, Álvaro Cunhal, nunca o vi na minha vida”. E só a seguir fala de Angola : “Depois aparece a situação angolana. Portugal dá-lhe a independência. Neto falou com Cuba depois da agressão e Cuba concordou em dar-lhe apoio. Não há presença soviética em Angola”.

Nessa altura, estão milhares de tropas regulares cubanas a combater em Angola, que contam com o apoio de mais de mil conselheiros militares soviéticos. Georgi Arbatov, um dos especialistas soviéticos que critica a intervenção sovieto-cubana como um precedente incompatível com a détente, recorda que, no Kremlin, a Guerra de Angola é comparada com a Guerra de Espanha: em 1936, Moscovo não tinha a força necessária para salvar a República espanhola, quarenta anos depois a República do MPLA pode sobreviver, porque a União Soviética se tornou uma superpotência e cumpriu o seu dever internacionalista.

(…)

Vítimas dos confrontos em Luanda, fotografias que os jornais portugueses da época ignoraram

O fim do império é um desastre anunciado. Depois da longa guerra colonial, com milhares de baixas civis e militares, o êxodo de centenas de milhares de brancos que partem de Moçambique e de Angola, sobretudo para Portugal e para a África do Sul; a execução dos soldados das tropas nativas que lutaram integradas nas forças portuguesas, nas três frentes da guerra colonial; e o início de guerras civis prolongadas nas duas antigas colónias portuguesas da África Austral são o resultado de uma descolonização tardia e precipitada.

A transição democrática é um sucesso inesperado. Depois do contragolpe de 25 de Novembro, é possível restaurar gradualmente a normalidade institucional nas Forças Armadas e redefinir uma nova fórmula de transição, com a II Plataforma de Acordo entre o MFA e os partidos políticos, cuja assinatura precede a aprovação da nova Constituição democrática, com os votos do PS, do PPD-PSD, do PCP e do MDP. No dia 25 de abril de 1976, é eleita a primeira Assembleia da República, onde o PS e o PPD-PSD mantêm a sua maioria de dois terços e o CDS substitui o PCP como o terceiro maior partido parlamentar. Dois meses depois, o General Ramalho Eanes, Chefe de Estado-Maior do Exército e candidato dos três maiores partidos democráticos, é eleito Presidente da República, o primeiro a ser escolhido por sufrágio direto e universal. A institucionalização do regime constitucional de democracia pluralista é o passo decisivo no regresso de Portugal à Europa.

André Malraux resumiu o feito: pela primeira vez na história do século XX, os Mensheviks venceram os Bolsheviks – os socialistas derrotaram os comunistas numa revolução iniciada por um golpe de Estado. Samuel Huntington declarou o 25 de Abril como o ponto de partida da terceira vaga de democratização que transforma a balança ideológica entre a aliança ocidental e o campo soviético. Depois das transições post-autoritárias na Europa do Sul e na América Latina, a vaga democrática chega ao bloco soviético, onde as transições post-comunistas tornam possível a reunificação pacífica da Alemanha e da Europa, no fim da Guerra Fria.

 
 
 
 
Last modified on Monday, 07 July 2025 20:02
- --