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Nos mercados de Luanda. Zungueiras e kupapatas na ordem.

Post by: 25 November, 2018

Surgiu em Luanda um mercado ao ar livre, enorme e naturalmente desordenado, na década de 1980, já depois da independência mas ainda antes do passageiro mas eufórico muito dinheiro do petróleo. Chamou-se Roque Santeiro porque nessa altura a célebre telenovela estava a sair na televisão - como se dizia "está a sair batata" quando acontecia elas aparecerem nas lojas.

O Roque Santeiro luandense tinha vistas antagónicas e a pior era a mais sincera. De um lado olhava, de cima, o porto, a baía e a ilha; do outro, ao mesmo nível, a lixeira, tão antiga que já fora nome do bairro. Dentro da sua sujidade e desorganização, o Roque Santeiro foi talvez a primeira manifestação da sociedade civil luandense, mortinha por sobreviver às guerras e à ideologia asfixiante.

Da primeira vez que lá entrei, convenci-me a também fazer fotos. Levei máquina fotográfica quando o clicar público era funesto. Arrependi-me porque logo reconfirmei que a palavra, sobretudo a falada mas também a escrita, era a melhor forma de a cidade se exprimir, bastava ouvi-la ou ler. Lembro-me de me ter debruçado sobre uma "Pharmácia", pelo menos estava assim escrito num cartão canelado, pousado no chão que já fora vermelho antes de tanta carrinha ter ali mudado o óleo.

A botica anunciada consistia num pano, também estendido no chão, para higienicamente apresentar boiões de Vick, vários medicamentes em bisnagas já ligeiramente apertadas, frascos de comprimidos... "Tem vitamina C?" O farmacêutico, que estava sentado sobre os tornozelos, passeou os dedos pelos produtos e lamentou: "Não. Só B12, serve?"

Continuei pelo Roque Santeiro dentro, contente pelo falar sempre tão surpreendente da cidade e dei comigo frente à visão então rara: um restaurante. Uma lona levantada por quatro paus, para quebrar o sol aos clientes, com a cozinha lateral em terreno baldio onde a comerciante, uma forte mulher bacongo, fritava carnes. Levantei a máquina fotográfica para o milagre e ouvi a mulher a dizer-me: "Fazes foto, levas uma bofa, cais no chão", e voltou aos bifes. E eu à palavra.

Luanda sempre teve um comércio rebelde, porque comerciar foi a escapatória das forças mais vivas dos que estão mais em baixo. Com uma equipa de reportagem do Jornal de Angola, andei pelos mercados da cidade, agora que o governo lançou a Operação Resgate - no fundo, resgatar as leis já existentes para que elas se pratiquem.

Na verdade, andámos mais pelas imediações dos mercados, onde as zungueiras de rua são alternativa mais barata às vendedoras de banca, que pagam licença e sentem a concorrência desleal - se é que se pode criticar quem tenta sobreviver. O assunto é nacional e anima discussões sociais. Na TV passam programas de debate, até de jovens empreendedores que trazem soluções vistas em Londres e na Cidade do Cabo. É mais raro discutirem-se exemplos de Lagos e Kinshasa, porque a emigração angolana aponta sempre para um furo acima da realidade local.

O Roque Santeiro, por razões urbanísticas megalómanas, já fechou há muito, mandaram-se os comerciantes para muito longe da cidade, para o Panguilo, junto ao rio Bengo. O meu colega jornalista André da Costa, o da escrita, que é do Sambizanga, escolheu um mercado próximo, o de S. Paulo, onde ele próprio, miúdo, já vendeu cadernos para arredondar o salário lá de casa.

João Gomes, o da fotografia, bacongo que conheceu a sua província incendiada durante a guerra colonial - ele nasceu em Mucaba, em 1963, marco trágico -, sabe mil vezes mais do que eu que uma máquina fotográfica saca-se ainda mais discretamente do que se pratica a sua religião.

Gomes é tocoísta, segue Simão Toco, tem a imagem dele à lapela. Ainda há dias homenageado a título póstumo, profeta pacifista, cristão e africano, Toco foi exilado como faroleiro para a ilha de São Miguel, nos Açores.

E eu trazia para a expedição um conhecimento de mais velho: quando, anos 50, o mercado foi para São Paulo, o meu bairro, aconteceu porque um pouco mais adiante o antigo mercado da Pameli começava a incomodar o trânsito que aumentava na estrada da Cuca. Uma das razões para a atual operação Resgate é a confusão que o comércio de ruas causa às próprias ruas. Nada de novo sob o céu de Luanda.

Em São Paulo, as zungueiras expõem o mínimo da mercadoria no chão, o essencial fica guardado, por panos, sobre as nádegas. Quando se aproximam as carrinhas Toyotas com os fiscais de colete amarelo, o comércio debanda. Com as zungueiras o fundo de comércio tem de ser ligeiro.

"Estão a dar corrida", "estão a apertar", "estão a chutar"... Os mercados, com banca, estão a ser protegidos como lugares exemplares e organizados. Em resposta popular, inventam-se novos lugares, mercados de "arreiou", mais baratos e sem vigilância. Por enquanto.

Os táxis coletivos são agora também obrigados a respeitar os lugares de tomar e largar passageiros. Pôr na ordem motoristas de Volkswagens azuis de traseiras imaginativas - "Até você é! Boca suja!!!!", lê um condutor para ficar dissuadido de insultar o taxista que vai ultrapassar - parece tarefa difícil de conseguir. Como os abusos foram até ao mais alto nível, querer impor a lei, mesmo contra hábitos arreigados, dá a sensação de que se quer mostrar mesmo que desta vez é que é.

Só a história breve trará uma resposta. Entretanto, já se veem sinais: muitos kupapatas, fenómeno relativamente recente de mototáxis, já levam capacete. Mas não vi nenhum com capacetes para o passageiro. Na zona do Tanque do Cazenga, Daniel recusa-se a levar-me na sua moto Lingken até à Mutamba, apesar da corrida bem paga que podia ser. A Mutamba, que é na Baixa, "tem polícia". Ele só percorre as ruas ao longo da linha férrea. Respeitar lei, temer a lei - importa muito saber o que valeu na decisão de Daniel? Se foi respeitar, importa, é bom. Se foi temer, vale menos mas já é alguma coisa.

Passamos pela Farmácia Bulivar, tabuleta em cima da placa que dá para uma loja com montra, e eu fico a desejar que seja do Azulinho que um dia encontrei no Roque Santeiro e subiu na vida. Passamos por ruas largas e por pessoas arriscando-se a correr pelo asfalto, apesar da ponte pedonal, "atravessante", como em Luanda se diz. Uma mulher grávida, "ainda por cima está concebida", como por lá também se diz, preferiu correr a subir ao atravessante.

Passamos pelo Palanca, dos congoleses, onde a partir das 18.00 as ruas laterais se fecham aos carros, abrem-se os altifalantes e das mesas não se tiram as cervejas já bebidas, porque cada garrafa é uma medalha.

Já junto ao muro alto do aeroporto, encimado por arame farpado, chegamos ao mercado dos Correios, fornecedor de peças de automóveis a Luanda e a Angola inteira. Aqui, a exigência subiu um patamar. Já não é a zungueira da rua que tem de passar para a banca do mercado, foi a banca ao ar livre ter de passar a ser loja, com alvará comercial. Foi arrasado o terreiro onde se podiam encontrar peças novas e em segunda mão para todas as marcas. O argumento é que quem vende amortecedores e vai buscá-los ao Dubai pode e deve ter um lugar mais próprio (e fiscalizável) para este negócio.

Manuel, malanjino que veio do anterior mercado de peças, na Calemba, em 1989, teve de embalar em seis dias todas as suas genuine parts, peças genuínas. Foi, sob protesto, para o mercado alimentar ao lado, metendo as embalagens das marcas Mazda, Toyota, nos fundos de um talho fronteiro a um lugar de venda de carvão.

Pormenor preocupante neste natural progresso social: toda a grande rua que leva ao Mercado dos Correios tem casas e casas de peças de automóveis e quase todas são propriedade de nigerianos e camaroneses, comerciantes com maior poder financeiro. Angola conquistou, a alto custo, a paz interna e aprendeu o valor disso. Nenhuma autoridade, partido, jornal, rádio ou televisão acirra a potencialidade de conflitos com imigrantes - continuar a seguir esta caso talvez nos confirmem a esperança que o país vive.

Last modified on Saturday, 01 December 2018 14:03

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