O luso-angolano não antevê um horizonte de esperança e deixa o alerta: “As pessoas estão a chegar a um limite. Isso vai ficar descontrolado e as coisas vão acabar por rebentar”.
Luaty Beirão foi preso em 2015 juntamente com outros ativistas que discutiam em Luanda um livro sobre formas pacíficas de protesto. Durante o cárcere, cumpriu 36 dias de greve de fome. Ele e os restantes ativistas acabaram por ser libertados ao fim de um ano e nove dias num processo que ficou conhecido como o dos “15+2”. Em entrevista ao Expresso, o luso-angolano deixa várias críticas a João Lourenço, que, diz, “não é muito diferente” de José Eduardo dos Santos porque “usa a mesma filosofia de domínio e de controlo”. E se é verdade que houve uma abertura para um aumento dos protestos com o novo Presidente, atualmente a cumprir o seu segundo mandato, a violência policial “também aumentou proporcionalmente”.
Com a mudança de inquilino no Palácio Presidencial, em 2017, há algo de substancial que tenha mudado ou, depois da ‘lua de mel’ de João Lourenço, está tudo como estava, designadamente ao nível da repressão policial nas manifestações?
Os fenómenos políticos e sociais são sempre muito mais complexos do que percebemos numa primeira análise. Assim que começamos a cavar, entendemos que nada é linear, nada é tão simples. Sendo justo com João Lourenço e a situação que vivemos hoje, há uma coisa que ele diz que é verdade: o número e a forma de protestos não têm comparação. No tempo de José Eduardo dos Santos, era um grupo de 20, 30 pessoas, sempre os mesmos, que organizavam vários tipos de protestos. Tudo para tentar partir esse muro, esse drama de que manifestação é sinónimo de guerra. Durante muitos anos foi muito difícil. Era uma manifestação por mês ou a cada dois meses. E era essencialmente em Luanda. Uma das coisas que João Lourenço fez ao chegar, com essa ‘lua de mel’, foi fazer crer às pessoas que o espaço estava aberto. Até a própria imprensa durante um ano começou a fazer coisas surpreendentes para nós: criticar más ações, apontar o mau trabalho de tal e tal governador, de tal e tal ministro, entrevistar de forma frontal alguns desses responsáveis. Eram tudo coisas novas e realmente começaram a dar a ideia de que poderia estar a preparar-se terreno para uma Angola mais arejada e o entendimento de que todos devem participar. As pessoas apropriaram-se desse espaço e começou a haver pessoas que nunca piavam por medo disso ou daquilo. O medo deixou de ser de morrer e passou a ser de perder o emprego, de ser perseguido, enfim todas aquelas outras formas de tortura psicológica que existem e que estão em prática até hoje e, portanto, medos legítimos. Começou a haver uma expansão muito grande do espaço público e isso também pode criar a perceção de que, como tem mais gente a criticar, tudo piorou.
Sentiram que andaram para trás?
De facto, há coisas que regrediram, sobretudo quando a gente sente que avançou um bocadinho, voltar nem que seja ao mesmo ponto, para nós, é pior. Como é que algo que estava a encaminhar-se para melhor, de repente, volta a ser igual? Não vou dizer que João Lourenço nos agraciou com o aumento da presença no espaço público e do exercício da cidadania, mas deu a entender que não haveria consequências para quem criticasse. Ele próprio fazia críticas internas ao partido e às pessoas que pensaram o país até àquele momento, admitindo que havia coisas que tinham estado muito erradas e que era preciso corrigir e encorajando as pessoas a fazerem isso. Sendo teatro ou não, para o teatro se verificar, as pessoas tiveram de acreditar e, ao acreditarem, começaram a reivindicar esses espaços, muita gente começou a falar, as manifestações deixaram de ser só em Luanda e eu diria que quase todas as semanas há manifestações. Também há muitas greves. Antes, era o sindicato dos professores que fazia e ponto final. Hoje em dia, há os enfermeiros, há os médicos, até os próprios magistrados do Ministério Público fazem greves, os juízes fazem greves. Chegou-se a um ponto em que estas coisas acabaram por ser mais ou menos normalizadas, ainda que existam consequências e não é só a fantasia ou um receio que vem das décadas todas de repressão. Há consequências ainda hoje – por exemplo, para as pessoas que pretendam criticar o juiz presidente do Tribunal Supremo, que tem acusações quilométricas de más práticas e de indícios de corrupção, que não são investigados. Há uma noção estranha de proteção dada por João Lourenço, ele mete-se em coisas onde não tinha de se meter e depois persegue aqueles que internamente o criticam. Essas perseguições e essa noção de ser arriscado reivindicar continuam a estar presentes porque as más práticas continuam e não são punidas.
Apesar de o direito à manifestação estar consagrado na Constituição, há registo de casas invadidas, muito aparato policial, balas reais disparadas, ameaças de morte, detenções em massa, muitas vezes seguidas de libertação poucas horas depois.
No tempo de José Eduardo, houve duas pessoas mortas mas não foi na manifestação. Aquilo foi uma coisa premeditada, preparada pelos serviços secretos. Os dois jovens foram raptados e foram mortos. Era para mandar um sinal, um recado. O que tem acontecido é que há uma falta de preparação da polícia, que vai para as manifestações com meios letais, que dispara balas reais e que não dispara para o ar quando se sente acossada ou intimidada, quando sente que está em inferioridade numérica. Dispara mesmo para matar. Isto é recente, isto é agora. E há vídeos daquelas manifestações espontâneas dos mototaxistas no Huambo, em que morreram três ou quatro pessoas se não estou em erro... Na Huíla vê-se a dispararem para a frente, não estão a disparar para dispersar, estão a disparar para atingir. Aumentaram muito as manifestações, mas proporcionalmente aumentou também a violência. Não é em todas as manifestações que há violência, mas as que incomodam, aquelas que não são anódinas, que são incómodas e que se dirigem diretamente a João Lourenço, essas são reiteradamente reprimidas e sem uma explicação plausível.
Na manifestação de 17 de junho, os polícias entraram nos bairros a disparar gás lacrimogéneo, atrás dos manifestantes. Eles já tinham dispersado e fugido e a polícia foi atrás. Nos bairros as casas estão todas muito próximas, não há propriamente grandes proteções e portões, e o gás entra na casa das pessoas, que têm bebés em casa... Aquilo não é para estar a pôr assim à toa. Temos uma polícia completamente despreparada, bruta e que depois não tem consequências. Quando somos detidos, e isso já há alguns anos, mesmo no tempo de José Eduardo, quando os próprios polícias a quem dão ordens para reprimir estão numa situação que já controlaram, eles mostram-se envergonhados e conscientes de que aquilo que estão a fazer é errado. Mas têm de cumprir porque a ordem vem de alguém que nunca dá a cara. Eles próprios filmam o que fazem e depois espalham.
A 11 de novembro de 2020 morreu o Inocêncio [Matos]. 11 de novembro, data da independência. Tudo muito irónico. Um jovem de nome Inocêncio, a primeira vez que participa numa manifestação, ajoelhado... Eu admito que tenha sido um acidente porque pelo vídeo percebe-se que a polícia está assustada, a recuar. Depois de estarem a disparar tiros para o ar, a multidão continua a vir para cima deles, só com gritos e com as mãos no ar. A polícia recua, atrapalhada, e o que me parece, por causa do ferimento abaixo do queixo e depois na nuca, é que o polícia ficou com a arma encravada e, ao destravar a arma, disparou e aquilo ricochetou no asfalto e atingiu o jovem ajoelhado. Mas, ao mesmo tempo que João Lourenço diz que está aberto um inquérito, ele já apresenta a versão que está a ser dada como oficial, ou seja, ele já quer justificar aquilo que aconteceu, não dando espaço ao inquérito e, de certa forma, condicionando a conclusão desse inquérito. E qual era a versão oficial? Que o jovem bateu com o queixo no passeio. Mesmo admitindo que não foi intencional, morreu uma pessoa numa manifestação, era um jovem universitário.
Em janeiro de 2021, na Lunda Norte, militares pisaram civis moribundos no asfalto. Vemos que os civis não têm armas, estão a avançar com os gritos normais de protesto, em plena luz do dia. Mas qual é a versão oficial? Foram de madrugada, armados, invadiram uma esquadra da polícia para removerem a bandeira de Angola e meterem a bandeira do Protetorado de Lunda Tchokwe. Então, eles alegam que, por terem invadido a esquadra, o que não aconteceu, a polícia agiu em legítima defesa. Os vídeos são bastante ilustrativos e devastadores. Porquê esta violência tão indiscriminada contra pessoas que podiam ser contidas de outra forma? É mais do que um despreparo, é uma apetência para punir mortalmente porque estão habituados a fazer isso e nunca há consequências.
Em maio de 2022, houve uma greve dos funcionários na barragem de Caculo Cabaça, no Cuanza Norte. Uma greve com um caderno reivindicativo normal, aquelas reivindicações normais, salariais, por melhores condições... Eles estavam uniformizados com a farda da empresa, com as mãos no ar e a dirigirem-se aos portões da empresa. Além da greve, estavam a fazer uma espécie de protesto em que iam ficar à frente dos portões. À distância, a polícia começou a disparar e matou três deles. Mas nunca há consequências. Estas coisas ficam no ar porque são pobres que morrem. As pessoas lamentam, ficam muito indignadas no momento, mas amanhã há mais outra coisa para lamentar, mais uma bala perdida da polícia que mata uma criança... Mas é recorrente. Agora dizer que João Lourenço é mais assassino do que José Eduardo... Essas conclusões, sem o contexto, são um bocadinho perigosas. É um facilitismo que não é bom. Nem sempre é simples debelar esta complexidade e chegar a uma conclusão.
Em entrevista recente ao Expresso e à Lusa, João Lourenço afirmou o seguinte: “Dizer que há pouca liberdade de manifestação em Angola, que a cidadania está posta em causa, não concordo. Pelo contrário, o meu ponto de vista é que até há excessos no exercício dessa liberdade de manifestação. Em Angola há manifestações de rua praticamente todas as semanas. A polícia reage quando tem de reagir.”============
O que é excesso de liberdade de manifestação? Ele não deu nenhum exemplo, imagino eu. É as pessoas chamarem-lhe nomes na Internet? Há pessoas que fazem vídeos a dizer coisas que não são bonitas de dizer, tudo bem, mas que 24 horas depois são encontradas pelos serviços de investigação criminal, expostas na televisão para mostrar aos outros o que lhes vai acontecer se o criticarem. São levadas a tribunal, acusadas de crimes que, às vezes, são de uivar. E depois há um terrorismo de Estado que é permanente. As pessoas convocam uma manifestação e são imediatamente chamadas pela polícia, o que cria um ambiente de intimidação. Dizem que é para conversarem sobre os moldes em que vai acontecer, qual é o percurso, dando a entender que é uma coisa amigável, mas chega-se lá, a uma sala cheia de oficiais, em que começam a dar a ideia de que não pode ser, porque é perigoso e não podem passar à frente do sítio tal e só pode ser de X horas a X horas. E se as pessoas reclamam o seu direito constitucional e dizem que os senhores não têm o direito de impor nada, então eles dizem que não podem garantir que vai haver segurança e isso normalmente quer dizer que vão bater.
Temos pessoas a serem perseguidas dia e noite por carrinhas e depois a serem raptadas. E eu digo ‘rapto’ porque a investigação criminal chega a casa das pessoas de madrugada – é ilegal fazer detenções de madrugada – e arromba a porta... No Huambo, há duas semanas, entraram pelo telhado, como reles bandidos, aos tiros, apontaram a arma a uma criança de cinco anos para dizer onde estava o pai. Não apresentam mandado, não dizem por que razão estão a levar as pessoas, mandam tiros para o ar para assustar a vizinhança e criam um ambiente de terror. É inconcebível que João Lourenço venha dizer que há um aumento da liberdade de expressão e das liberdades em geral quando, por exemplo, há um ativista por quem a Amnistia Internacional está a fazer campanha, demonstrando tudo o que correu mal em mais um desses processos judiciais de palhaçada, em que não há provas, mas há acusações de crimes muito pesados. O rapaz foi condenado a um prazo que já tinha cumprido e um tribunal angolano emite um mandado de soltura, que leva 33 dias a ser executado. E depois soltaram-no sem explicação para os 33 dias em que esteve preso indevidamente, sem pedido de desculpas e sem ninguém sofrer consequências. Isso tudo mostra que é intencional, não é só excesso de burocracia ou atrapalhação administrativa. Há um efeito psicológico que se transfere aos demais e depois há uma total impunidade para quem pisa a Constituição.
Quando João Lourenço se antecipa às conclusões dos inquéritos entretanto abertos e adota a versão da polícia, vê aqui cumplicidade do Presidente relativamente aos atos praticados?
Obviamente. Ele sabe quais são as práticas que vêm enraizadas de muitos anos de direcionismo do poder unipessoal que existia em Angola e continua a existir. O fato serve-lhe bem. Ele escolhe e exonera juízes e militares, é dono do país basicamente. Uma pessoa que governa por decreto, que distribui dinheiro por ajuste direto... 95% da contratação pública foi por ajuste direto. Já não há concursos públicos, porque dizem que não há tempo, tudo é urgente. Ele decide tudo sozinho. A Constituição pouco importa. Ele manda. Quando há esse hábito, o Presidente é cúmplice. Apesar de ter anunciado a abertura dos inquéritos, ele decidiu dar a versão oficial duas vezes, tanto com o Inocêncio como no caso de Cafunfo, na Lunda Norte. Portanto, não tenho nenhuma dúvida nem nenhuma hesitação em dizer que ele é cúmplice dos crimes. Ele não leva aquilo a sério e quer passar uma borracha por cima desses comportamentos. E depois é ofensivo e arrogante quando tenta relativizar e diz que não há fome em Angola, há é alguma má nutrição. Então, distancia-se das pessoas. O que ele conseguiu – e que era impensável alguém do MPLA conseguir – durante aquele primeiro ano e meio deitou tudo a perder num instante.
Esse modo de dizer que não há fome faz lembrar aquela peça da Televisão Pública de Angola em que a jornalista se referiu à greve de fome do Luaty como “um comportamento diferente em relação aos alimentos”.
Essas acrobacias são incríveis e mostram infantilidade. Chega a ser vergonhoso que pessoas mais velhas, que se querem comportar como sérias, terem esse tipo de atitudes. E infelizmente João Lourenço está a seguir o mesmo padrão. O que está a acontecer é que ele está a fechar-se cada vez mais, como José Eduardo fez, mas num prazo muito mais curto. O ocupante da cadeira presidencial de hoje, no fundo, é mais uma pessoa não muito diferente da anterior, que usa a mesma filosofia de domínio e de controlo e a manutenção do poder pelo poder. Não ouve ninguém e acha que tem toda a panaceia para os nossos males. Dizer que tudo isto é desanimador seria um eufemismo. É desolador, é aterrador mesmo, só pensar que é mais uma geração que vai crescer com um sonho adiado, o sonho de aspirar a essa liberdade de poder participar. Mas a política do músculo, da intimidação e da repressão tem limites. A aspiração das pessoas de serem livres é sempre mais forte do que qualquer repressão e, ao longo das gerações, vai-se tornando mais ensurdecedora. As pessoas estão a chegar a um limite. Isso vai ficar descontrolado e, infelizmente, antevejo que as coisas vão acabar por rebentar e não vai ser bonito e, ainda por cima, não se pode prever o que vem a seguir porque o que vem a seguir pode ser ainda pior. É tudo muito incerto, tudo muito tenebroso. As nuvens no horizonte não revelam uma bonança para tão breve, infelizmente.
Na terça-feira, João Lourenço foi o anfitrião de uma cimeira quadripartida para a estabilização da paz no leste da República Democrática do Congo. Tem havido uma desvalorização desse papel desempenhado por alguém, dizem os críticos, que não consegue dar resposta às reivindicações dos manifestantes no seu próprio país e cujas autoridades policiais reprimem os protestos.
Primeiro, não vejo que ele vá conseguir seja o que for. Gostaria de estar errado. Mas uma pessoa que não tem a mente suficientemente aberta para conseguir lidar com problemas domésticos, que conhece bem, não vai ter a capacidade de pacificar os problemas mais intricados, mais complexos de uma sub-região. Mas isso é também uma forma de legitimação do regime angolano. Eu dou tanta ou tão pouca importância a essas organizações, a tudo o que é União Africana, aos tribunais africanos que nem sequer me dou ao trabalho de acompanhar. Então, também não teria uma resposta substancial para dar. Mas posso dizer que quem não cuida da casa não cuida do bairro.
E, em Portugal, os sucessivos governos também têm contribuído para a legitimação do Presidente de Angola?
Esta relação é a pior de todas porque, ao mesmo tempo que tem de existir, a maneira como Portugal dobra a espinha ou mostra maleabilidade na dorsal é um bocado constrangedora. Em Angola gostam de dizer que somos um Estado soberano, mas depois o MPLA é muito astuto. E António Costa ser apanhado numa fotografia a segurar uma camisola do MPLA antes das eleições é para lá de triste, é vergonhoso. E antes, no Governo do PSD, o ministro Rui Machete foi a Angola e pediu desculpa. Por favor! Pedir desculpa porque a justiça portuguesa estava atrás de Manuel Vicente [então vice-presidente] é triste. É com isso que temos de lidar. Mas também devia haver formas de denunciar esse namoro, esse romance, porque não dignifica ninguém e prolonga o sofrimento de milhões de pessoas.