A expressão “quem vê caras não vê corações” não foi inventada para João Lourenço, mas encaixa-lhe bem. Mal começou a primeira visita de Estado a Portugal, o Presidente angolano disse que “os amigos querem-se juntos”. Foram no entanto precisas seis horas de cerimónias e discursos para lhe ver o primeiro sorriso.
Por Bárbara Reis
E aqui acabam as semelhanças com o seu antecessor. Nos seus 38 anos no poder, José Eduardo dos Santos também nunca foi homem de grandes sorrisos em momentos oficiais. Em tudo o resto, o novo Presidente de Angola usou o primeiro dia de visita a Portugal para sublinhar o contraponto com o ex-Presidente e evidenciar a viragem. Na substância, no estilo e na forma. O general Lourenço vem de dentro e do sistema, mas é o Presidente anti-José Eduardo dos Santos.
É uma marcação homem a homem. O que disse, onde foi, o que fez e até na abertura dos contactos com a imprensa — reservou uma hora para uma entrevista colectiva com a imprensa portuguesa no sábado —, João Lourenço afirma-se pelo seu programa e ideias, mas também pela diferença com o regime anterior e por aquilo que quer destruir do que herdou.
Já sabíamos que José Eduardo dos Santos só visitou Portugal quatro vezes em quatro décadas e, dessas, só duas foram visitas de Estado. Já sabíamos, mas João Lourenço abriu a intervenção no Palácio de Belém, com Marcelo Rebelo de Sousa ao lado — a sorrir, claro — dizendo isto: “Viemos corrigir algo que nos parece anormal: o facto de termos deixado passar um período bastante longo sem que tivesse havido a troca de visitas de chefes de Estado. Os amigos querem-se juntos, os amigos devem visitar-se. A última vez que um chefe de Estado angolano visitou Portugal foi há nove anos. Alguma coisa terá falhado nesta busca permanente de alimentar uma amizade.”
Nos últimos 14 meses, tornou-se um hábito ouvir o novo Presidente usar o verbo corrigir. “Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”, disse quando assumiu a presidência do MPLA em Setembro. O que está mal? “A corrupção, o nepotismo, a bajulação e a impunidade.” Já sabíamos que João Lourenço tem um estilo tranquilo e directo e que chama as coisas pelos nomes. Mesmo assim, o novo líder angolano fez questão de dizer, na Assembleia da República portuguesa, que a sua ambição é maior. “Estamos a construir uma nova Angola”, disse ao lado de Marcelo e Eduardo Ferro Rodrigues. Não é melhorar Angola, é fazer um novo país. Uma Angola onde há “transparência” (versus corrupção), “concorrência leal nos negócios” (versus nepotismo), “moralização da sociedade” (versus impunidade), “reposição da autoridade das instituições do Estado” (versus bajulação).
Mas o contraste é até mais simples. O Presidente anti-Dos Santos foi o primeiro chefe de Estado de Angola a discursar no Parlamento português, uma “distinção rara” reservada aos “amigos” próximos, notam os diplomatas. Moçambique discursou três vezes, o Brasil quatro (e essas são sete das 19).
Até os marimbondos ajudaram para criticar José Eduardo dos Santos e a sua filha Isabel, que Lourenço afastou da Sonangol e que ontem saiu em defesa do pai lançando um tom de alarme.
Os marimbondos são vespas que caçam aranhas e a sua picada está no topo da escala da dor das picadas de insectos. Fazem parte da cultura popular angolana e há até um poema de Ernesto Lara Filho, Picada de Marimbondo, que foi musicado pelo célebre Waldemar Bastos (e que Fausto adaptou para o seu disco A Preto e Branco). Porque está a falar para dentro, mas também para fora, Lourenço usou a imagem com calma: “Quando nos propusemos combater a corrupção em Angola, tínhamos noção de que precisávamos de ter muita coragem, sabíamos que estávamos a mexer num ninho de marimbondos.
Até se costuma dizer que a picada da vespa é mais dolorosa do que a picada da abelha, por isso imaginem... Nós sabíamos que podíamos ser picados. Já começámos a sentir as picadelas. Mas isso não nos vai matar. Não é por isso que vamos recuar. É preciso destruir esse ninho de marimbondos. Quantos marimbondos existem nesse ninho? Não são muitos. Angola tem 28 milhões de habitantes, mas não há 28 milhões de corruptos. O número é bastante reduzido. Há uma expressão em Angola: somos milhões e contra milhões ninguém combate. Essa expressão continua viva, não morreu. Que ninguém pense que, por todos os recursos que tem, de todo o tipo, consegue enfrentar-nos.” O recado ficou dado.
Mais tarde, um jornalista angolano lembrou que a frase de propaganda das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), que ele ouviu muitas vezes quando era um jovem pioneiro, não é apenas “somos milhões e contra milhões ninguém combate.” Tem mais uma frase: “Quem combater, será derrotado.”
Foi só ao fim da tarde que se viu Lourenço sorrir. O presidente da Câmara de Lisboa, que ofereceu as chaves da cidade ao seu convidado, teve três ideias que ajudaram. Para a cerimónia solene, o autarca convidou embaixadores, antigos estudantes angolanos que usaram a Casa dos Estudantes do Império e uma turma de crianças de uma escola pública. “Senhoritas e senhoritos”, registou o general, com uma pequena vénia. O outro sorriso aberto — e a quebrar o protocolo — foi para ir abraçar o embaixador António Monteiro, chefe da missão de Portugal junto da Comissão Conjunta Político Militar (CCPM) em Luanda a seguir aos Acordos de Bicesse. Hoje o dia é mais executivo. Em vez de recados, haverá reuniões para fechar acordos e tempo para tentar abrir novos negócios. A cooperação, fico dito, tem de ser “mutuamente vantajosa”. PUBLICO