Para Tchizé dos Santos, os seus problemas com a Justiça portuguesa pareciam ter ficado resolvidos com um despacho, exarado a 13 de novembro passado, pelo juiz Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC). O magistrado decretou a "absolvição da instância" da filha mais nova do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, que era suspeita de branqueamento de capitais num inquérito-crime em curso no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), desencadeado após uma denúncia do jornalista e ativista angolano Rafael Marques. Mas a investigação continua depois do Ministério Público (MP) ter recorrido desta decisão e vencido.
Ancorado na tese de que o branqueamento de capitais tem de possuir um ilícito precedente, o juiz Ivo Rosa considerou no seu despacho que, quanto aos factos em causa, "alegados crimes de corrupção, burla e fraude fiscal cometidos em Angola", o MP português "carece de competência para os investigar (...)". Depois, o magistrado verificou a "exceção por incompetência absoluta" do TCIC, por "violação das regras de competência internacional", e em consequência decretou a mencionada "absolvição da instância" de Tchizé dos Santos.
O MP recorreu, para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), do despacho que ilibava de suspeitas a filha de José Eduardo dos Santos, alegando, em primeiro lugar, que o juiz de instrução Ivo Rosa extravasou as suas competências. "Em obediência ao preceituado" na Constituição, lê-se no recurso, "a estrutura acusatória do processo penal português implica a cisão entre as funções daquele que investiga daquele que julga". É até reproduzida uma consideração feita por José Souto Moura, ex-PGR, num dos seus livros: "Arvorar-se o juiz em paladino da pretensão punitiva, sem o Ministério Público, seria voltar a um sistema inquisitório puro (...), [sendo que] qualquer intervenção do juiz à revelia do Ministério Público, para se pronunciar sobre a justiça do caso e antes mesmo do exercício da ação penal, seria inadmissível".
Mas foi o que aconteceu. O juiz de instrução Ivo Rosa ilibou uma pessoa suspeita, por antecipação – ou seja, sem que tivesse existido uma promoção do MP nesse sentido, o que, lê-se no recurso, torna a "decisão ferida de nulidade insanável".
O MP alega que "a necessidade de se verificar um nexo de causalidade entre a prática do facto ilícito típico precedente e a obtenção da vantagem não significa que o crime de branqueamento não seja legalmente conformado como um crime autónomo que visa dar proteção a um específico bem jurídico". Aliás, no caso dos autos do processo que envolve Tchizé dos Santos, "o objeto do inquérito" trata "precisamente de factos autónomos e distintos dos da prática daqueles consubstanciadores de factos ilícitos típicos alegadamente ocorridos em Angola: os movimentos financeiros detetados que refletem, com elevada probabilidade, face às suas características, a intenção de ocultar a sua real origem e dissimular a sua natureza ilícita", argumenta o MP.
É ainda destacada a "vinculação do Direito português a regras europeias", sobretudo a uma diretiva comunitária já de junho de 1991, "relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais", a qual, "no seu art. 1.º, estabelece que ocorrem manobras de branqueamento, ainda que as atividades que geraram os bens detetados nessas manobras se tenham desenvolvido no território de outro Estado membro ou em país terceiro".
Nas suas contra-alegações para o TRL, os advogados de Tchizé dos Santos defenderam, claro, a decisão do juiz Ivo Rosa. "Comprovado está", escreveram, "que os factos que deram origem aos presentes autos têm definido o seu lugar de consumação em Angola e que as queixas-crime apresentadas pelo assistente [Rafael Marques] em Angola já foram objeto de arquivamento em Angola", onde Tchizé dos Santos, "cidadã nacional angolana, reside, exerce funções e é contribuinte fiscal", pelo que resulta "inequívoca a incompetência do Estado português para investigar e perseguir criminalmente" a filha do Presidente José Eduardo dos Santos.
O recurso do MP recebeu, no último dia 6, "total provimento" por parte de um coletivo do TRL formado pelos desembargadores Ricardo Cardoso e Filipa Macedo. O DCIAP pode voltar a investigar Tchizé dos Santos – que não foi constituída arguida nem se sabe se o será. Sempre tortuosos, os caminhos da Justiça.
VISAO