Antigo presidente do Observatório Político e Social de Angola, Fernando Pacheco denuncia ainda aquilo que diz ser o medo que o MPLA tem de realizar eleições autárquicas e aponta o que considera alguns pontos fracos da governação de João Lourenço.
Em que medida a recusa, pelo Presidente João Lourenço, de qualquer tipo de negociação com Isabel dos Santos pode acentuar ainda mais a crise política angolana?
A crise política angolana não é de hoje e não se pode resumir ao caso Isabel dos Santos. A crise começou quando o MPLA e José Eduardo dos Santos (JES) falharam o processo de reconciliação nacional e de reconstrução do tecido económico e social depois da guerra, e agudizou-se com a crescente contestação ao Presidente e quando o preço do petróleo no mercado internacional baixou para menos de 40 dólares o barril, em 2014. O país e o mundo deram-se conta de que o rei ia nu.
E qual seria a solução?
Uma solução para a crise exige uma abordagem global e o envolvimento dos atores políticos, económicos e cívicos.
Essa abordagem global da saída da crise ainda passa por um encontro entre João Lourenço e o antigo Presidente Eduardo dos Santos?
Não creio que o antigo Presidente tenha um papel a desempenhar na solução da crise. Ele perdeu o seu capital político há muito e está com a imagem desgastada. O país precisa de soluções novas para problemas antigos e não vejo José Eduardo dos Santos com capacidade e energia para desempenhar um papel que seria fundamental há uns anos. Definitivamente, o seu tempo passou.
O combate contra a corrupção tem sido exaltado em vários quadrantes mas o Presidente não deixa de ser acusado de levar a cabo uma cruzada seletiva. Partilha esse ponto de vista?
Esta é uma maneira muito redutora de ver o problema. Em primeiro lugar, o combate teria de começar forçosamente “por cima”, isto é, pelos atores mais determinantes e com maior visibilidade. É verdade que até agora não atingiu todos os “de cima”, mas não se pode imaginar que isso fosse possível.
Porquê?
Porque há que ter em conta que a Procuradoria-Geral da República tem limitações, quer de capacidades – muita gente esquece que um dos pilares da crise foi a extrema fragilidade das instituições –, quer de compromisso de muitos dos seus elementos com o combate em curso.
Não compreendo como não se valoriza o que está a acontecer em algumas províncias e municípios, onde colaboradores diretos de governadores e ex-responsáveis da Justiça estão presos ou já foram condenados. No caso dos municípios creio que já mais de 10 Administradores (representantes do governo central), que ao mesmo tempo são os chefes locais do MPLA, foram condenados por peculato e outros crimes. Já viu o que isso representa aos olhos da população? Há mesmo quem diga que estes factos podem estar a pesar na indecisão que paira sobre a possibilidade de realização das eleições autárquicas este ano.
E acha que as eleições vão ser mesmo adiadas, como sugere a oposição?
Tenho fortes dúvidas que se realizem. Este é um indicador das dificuldades atuais do MPLA. Tem receio de realizar eleições autárquicas, mas pagará muito caro caso as adie.
Voltando à corrupção: acabam de surgir novos casos ao nível do Governo e do próprio gabinete do Presidente. O que é que isso representa?
Este processo já não se pode parar. O Presidente está numa situação muito difícil. Se não for até às últimas consequências perderá o capital político que granjeou interna e externamente. Se for, corre o risco de perder o apoio do aparelho Partido-Estado que o sustenta. Ele terá de gerir este assunto com muito tato e sabedoria. Terá de perceber também que o MPLA, no seu conjunto, foi o sistema que criou, ou permitiu que fosse criada, a gangrena. Resta saber se terá capacidade para a curar...
Havendo quem queira colaborar com a Justiça, em contrapondo com quem insiste em afrontar o Estado, como lidar com gente com muito dinheiro numa altura em que o Estado precisa de recursos?
Não me parece errada a identificação dos atos lesivos, o desencadeamento de processos judiciais e a negociação para a devolução de todos os ilícitos. Aos prevaricadores que colaborassem seria garantido um perdão judicial. Isso no quadro da solução global de que falei.
À medida que o tempo passa, cresce o desencanto da população face a um aumento cada vez mais insuportável do custo de vida. Em que medida o fraco desempenho da economia pode vir a atirar o Presidente para as boxes?
Esse é o grande desafio. O Presidente acredita que o sector privado nacional e o investimento estrangeiro vão resolver o problema. Acontece que um punhado de empresários – entre os quais muitos que cresceram no ambiente viciado dos últimos 30 anos e por isso sem músculo para enfrentarem as vicissitudes do mercado – não pode fazer o que lhes está a ser pedido. O investimento estrangeiro é ainda tímido, porque o ambiente de negócios, que está a melhorar, ainda está longe de ser atrativo.
E qual seria o caminho a seguir?
Na economia e noutros sectores, o país continua a acreditar em grandes projetos sorvedouros de recursos que falharam no passado e continuarão a falhar, porque não estão adequados à realidade do país. A saída passa por apostar nas micro e nas pequenas empresas. Se isso não for feito, o Presidente João Lourenço terá muitas dificuldades a nível do seu partido e depois numa eventual recandidatura.
O que está a falhar na presidência de João Lourenço?
Uma visão para uma saída da crise baseada nas reais capacidades internas, uma maior preocupação com os problemas sociais (não está a ter em conta as críticas da sociedade ao despesismo quando as pessoas estão a sofrer tanto) e a ausência de uma estratégia adequada do reforço das capacidades institucionais e empresariais. Há razões históricas que explicam essas fragilidades, mas não há razões que expliquem a ausência de medidas corretoras.
No braço de ferro que se regista em torno do combate contra a corrupção, quem sairá a ganhar: o Presidente?
Na perspetiva holística, a crise só poderá ser ultrapassada com uma espécie de pacto global entre as forças representativas da nação. Incluo nessa solução todos os dossiês pendentes. É difícil, mas não é impossível. O importante é saber negociar e estar aberto a consensos.
A UNITA quer alterar a Constituição mas ainda não disse o que pretende. Também acha que a Constituição deve ser alterada?
Já não há mais ninguém que defenda esta Constituição. Acho que o próprio Presidente estará na disposição de anunciar a sua revisão como bandeira de uma campanha de recandidatura para um segundo mandato. Numa palavra, a Constituição foi feita para servir um desígnio político que está ultrapassado.
Os modelos de governação adotados em Angola desde a ndependência falharam...
O modelo baseado na “mania das grandezas”, de tipo “soviético” (com esta ou outra designação), fez escola tanto no período da tentativa socialista como no da reconstrução pós-guerra. Um modelo que favorecia o desvio e provocou o vazio. Tudo tem de ser repensado, não para se começar do zero, mas partindo das lições aprendidas (boas e más) para a procura de soluções. Não tenho uma receita, apenas uma convicção: temos de partir das evidências empíricas, e estas mostram que temos de valorizar mais os recursos internos renováveis e as pessoas. Acredito mesmo que um país só será bom para se viver se houver da parte de quem governa e de quem é governado a preocupação de procurar um equilíbrio entre os direitos cívicos e políticos, por um lado, e os económicos, sociais, culturais e ambientais, por outro. EXPRESSO