O evento tem um duplo caráter. Primeiro, quer mostrar que os EUA continuam se considerando um farol para o mundo democrático, a despeito das cenas protagonizadas por apoiadores do então presidente Donald Trump que tentaram interromper a certificação do democrata Joe Biden como novo presidente dos EUA.
Segundo, quer tentar fomentar compromissos de aliados em relação à democracia - em baixa ao redor do mundo - e se aproximar de alguns países, ao mesmo tempo em que fustiga outros, especialmente as nações autocráticas China e Rússia.
Na cimeira virtual - marcada para os próximos dias 09 e 10 e organizada a partir de Washington - o Presidente norte-americano vai reunir líderes de governos, mas também do setor privado e de organizações civis, num esforço global para defender as democracias contra o autoritarismo, a corrupção e os ataques sistemáticos aos direitos humanos.
A mais recente edição do Relatório Global sobre o Estado da Democracia - do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social (International Idea), com sede em Estocolmo – divulgado em novembro, revela que o mundo está a tornar-se mais autoritário e que os governos democráticos estão a retroceder, com o recurso a práticas repressivas e o enfraquecimento do Estado de Direito.
O relatório mostra que o número de Estados democráticos onde se verificaram retrocessos nos parâmetros avaliados duplicou na última década, incluindo países como os Estados Unidos e alguns países da União Europeia, como a Hungria, a Polónia e a Eslovénia.
Com a Cimeira para a Democracia, Joe Biden procura combater esta tendência de degradação das democracias no planeta, apresentando-a como uma espécie de frente de países livres contra as tiranias e os populismos.
Por isso, alguns grupos de defesa de direitos humanos criticam a listas de países convidados, questionando a legitimidade da presença de alguns regimes cujas referências democráticas são, no mínimo, discutíveis: como a República Democrática do Congo, o Paquistão, o Iraque, a Índia ou as Filipinas.
O regime do Presidente filipino, Rodrigo Duterte, que tem sido acusado de sistemáticos ataques aos direitos humanos, ou o do Presidente indiano, Narendra Modi, que o ‘think tank’ Freedom House considera que está a levar o país para o autoritarismo, são exemplos que organizações internacionais apontam como contraditórios com o espírito da Cimeira para a Democracia.
Um funcionário do Departamento de Estado norte-americano, envolvido na organização da cimeira virtual, explica que a lógica dos convites não se prendeu apenas com a avaliação do grau de democraticidade dos países ou dos líderes, lembrando que houve igualmente uma preocupação com a diversidade regional.
Aplicando a grelha de análise da Freedom House, o lote de países convidados integra 69% de países com regimes livres, 28% de países com regimes parcialmente livres e 3% de países com regimes autoritários.
Em termos geográficos, o hemisfério ocidental tem 27 países, além de 39 países da Europa (incluindo Portugal). Todos os membros da União Europeia irão participar na cimeira, exceto a Hungria, que não foi convidada.
Segue-se a região da Ásia-Pacífico, com 21 países, e da África Subsaariana com 27.
As regiões menos representadas na cimeira são o Médio Oriente (só Israel e o Iraque foram convidados), o Norte de África e a Ásia central.
A nível da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, participam ainda Angola, Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e Moçambique não foram convidados.
A China, Cuba, Guatemala, Venezuela e Rússia são outros países que ficaram de fora.
Os críticos da Cimeira para a Democracia questionam a eficácia do encontro e perguntam o que poderá ser atingido em apenas dois dias de uma reunião em formato virtual, além de denunciarem o teor abstrato dos objetivos colocados.
Lisa Curran, investigadora de Política Internacional da Universidade de Colúmbia, defende a iniciativa, lembrando que pode ser um primeiro instrumento para criar uma “frente de combate democrático”, numa altura em que organizações como as Nações Unidas estão enfraquecidas.
“Há também o problema chamado China. Os Estados Unidos já perceberam que não podem contrariar o crescimento hegemónico chinês sozinhos. Precisam de aliados e precisam de liderar movimentos democráticos contra os autoritarismos”, explicou Curran, em declarações à Lusa.
Nuno Gouveia, especialista em política norte-americana, recorda também os objetivos internos de Biden, defendendo que a cimeira pode ajudar a contrariar o desgaste de popularidade que o Presidente dos EUA tem sofrido, em particular após a conturbada saída de tropas do Afeganistão.
Mas é, sobretudo, no tabuleiro da afirmação externa que Biden joga a cartada da cimeira.
“Biden tem tentado convencer os aliados ocidentais, sobretudo na Europa, a juntarem-se a uma grande aliança contra a China, numa tentativa de limitar a influência chinesa no mundo. Esta cimeira é mais uma ação dentro dessa estratégia, onde até não faltou o convite a Taiwan”, explicou Nuno Gouveia.
“Vai ser um teste ao mantra de Biden “America is Back”, de que os Estados Unidos voltariam à liderança global sob o seu mandato para enfrentar as forças autoritárias lideradas pela China e pela Rússia”, corroborou à Lusa Felipe Pathé Duarte, professor da Nova School of Law.
Numa conferência de imprensa de antevisão do encontro, Dana Banks, assistente especial do Presidente norte-americano, disse que a iniciativa visa a adoção de compromissos e iniciativas para reavivar a democracia em todo o mundo.
“O regresso a princípios democráticos é a chave para abordar a crise climática, sair da pandemia ou assegurar que os impactos da corrupção não afetam as vidas dos mais vulneráveis”, declarou a diretora para África no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, adiantando esperar-se que do encontro saiam “compromissos ambiciosos, realistas e concretos”.