Por estes dias, mais do que nos últimos 38 anos, a herança que José Eduardo dos Santos deixa ao seu sucessor tem dominado o debate político em Angola. O Presidente acidental, que chegou ao poder porque os dirigentes históricos do MPLA, após a morte de Agostinho Neto em 1979, não quiseram medir forças entre si e optaram por uma solução que pensavam ser transitória, eternizou-se por quase quatro décadas no palácio presidencial. Durante esse período, enfrentou uma longa guerra civil contra a UNITA, mas derrotou as forças do Galo Negro e enterrou o machado de guerra após a morte do líder umbundu em combate, em fevereiro de 2002. A partir daí, instituiu uma democracia mais formal do que prática, acumulou cada vez maior poder político nas suas mãos e cada vez mais poder económico na sua família, distribuiu benesses, prebendas e sinecuras por generais e pelo seu círculo mais fiel, fez e desfez possíveis sucessores políticos e aproveitou os elevados preços do petróleo durante os primeiros 14 anos deste século para ensaiar a estratégia de internacionalização da Sonangol, a petrolífera pública angolana e para dar passos para tornar o país uma potência regional, com influência sobre a República do Congo e o Zaire.
Há três anos, contudo, tudo mudou. Ao agravamento do seu estado de saúde, com idas cada vez mais frequentes à Clínica Planas, em Barcelona, para tratar de um cancro da próstata, juntou-se a queda abrupta do preço do petróleo para a casa dos 40/45 dólares, quando nos anos de ouro para Angola, no início do século, as cotações andaram acima dos cem euros ou próximo desses valores. Começou a vir ao de cima a falta de diversificação da economia angolana, sempre prometida e sempre adiada. E as reservas em divisas do país entraram em queda acentuada. Desde o início da crise dos preços do ouro negro, em 2014, a quebra das reservas internacionais líquidas, que atingiam €23,9 milhões, ascendeu a mais de €8000 milhões, mas quase 3000 milhões das perdas verificaram-se nos primeiros cinco meses deste ano. E apesar de essas reservas atingirem 15,9 mil milhões em maio, o certo é que não suportam a contínua degradação mensal e ao ritmo a que se estão a processar.
Mas se na frente financeira a situação é preocupante, não o é menos no sector bancário. Na primeira década do século, em que a economia angolana foi a que registou o maior crescimento mundial, o sector da construção conheceu um enorme desenvolvimento, impulsionado pelo crédito bancário. Condomínios de luxo e obras públicas faraónicas nasceram como cogumelos. A travagem abrupta dos três últimos anos levou a que muitos desses créditos bancários deixassem de ser cumpridos, colocando vários bancos à beira da bancarrota, levando o Estado a comprar o crédito malparado de vários.
Ora é este quadro económico e financeiro que o novo Presidente vai herdar e com o qual vai ter de começar a lidar logo no dia seguinte à sua posse. E o que está escrito nas estrelas é que o sucessor de Eduardo dos Santos vai ter de bater à porta do FMI para negociar um pedido de ajuda, que não só permita manter a compra de matérias-primas, produtos alimentares, maquinaria e outras importações, como delinear um plano para sanear o sistema financeiro angolano. A desvalorização do kwanza, a subida de impostos e cortes na Função Pública são inevitáveis.
Tudo isto vai doer e vai provocar mal-estar e tensões políticas e sociais. A probabilidade de começar a haver ajustamentos de contas com os que se tornaram milionários à sombra do regime não é despicienda. E isso acontecerá sobretudo se o MPLA tiver uma vitória que ande à volta dos 40%, longe dos mais de 65% que já conseguiu — e verificar-se-á muito mais depressa se a UNITA ou a CASA-CE forem os vencedores, o que neste momento não se afigura nada provável. Mas a vitória do MPLA, numas eleições onde não há observadores internacionais e as empresas estrangeiras que vão controlar o processo são contratadas pelo Governo, não está seguramente em causa.
Em qualquer caso, o cenário mais admissível é que, neste quadro de sufoco financeiro, as tensões venham precisamente do interior do MPLA. Alex Vines, diretor do programa para África do think tank Chatham House, disse isso mesmo em entrevista ao “Público”: “Acredito que Angola está num ponto de viragem e que a mudança está mesmo para a acontecer. Mas vai acontecer num processo de ajustes, avanços e recuos, vai ser confuso e feio”. Nos últimos meses, José Eduardo dos Santos tomou um conjunto de decisões que visam, na prática, manter nas suas mãos o controlo de importantes áreas políticas, económicas e financeiras: nomeou novas chefias militares e da área de segurança; renovou o mandato da Endiama, a empresa nacional de diamantes; a filha, Isabel dos Santos, disse que pensa cumprir o mandato à frente da Sonangol; e o filho, Filomeno dos Santos, também não está de saída do Fundo Soberano de Angola.
Ora por mais que João Lourenço tenha sido escolhido por Eduardo dos Santos para lhe suceder há de querer começar a colocar pessoas da sua confiança em pontos estratégicos do aparelho do Estado. Por seu turno, a mulher, Ana Lourenço, com experiência interna e externa (ex-ministra do Planeamento, ex-diretora executiva do conselho de administração do Banco Mundial) não só não será uma primeira-dama decorativa como não morre de amores por Isabel dos Santos. Por tudo isto, a probabilidade de Angola entrar numa zona de forte turbulência política e social na segunda metade deste ano é enorme. Algo vai acontecer. Quando e como é o que se verá.
Expresso