É uma entrevista rara, não só por ser alguém que dá poucas entrevistas, sobretudo em Portugal, mas também porque a conversa não tem limite de tempo. Talvez por isso, pouco foi deixado ao acaso. Isabel dos Santos recebe a equipa do Observador no Hotel Ritz, em Lisboa, onde reservou duas salas. Consigo tem os assessores que a acompanham em Portugal e, além das câmaras do Observador, o momento é também registado em fotografia e em vídeo pela equipa da empresária angolana. Num dia de caos em Lisboa por causa da depressão Elsa, aquela que é considerada a mulher mais rica de África — que haveria de dizer que não sabia sequer se era a mulher mais rica de Angola — chega sorridente, com um conjunto de papéis na mão, que a acompanham durante a entrevista, mas a que pouco recorre.
Ao longo da entrevista, tenta traçar uma linha clara entre José Eduardo dos Santos pai e José Eduardo dos Santos Presidente da República, para garantir que nunca foi beneficiada por causa do apelido ou teve acesso a negócios pela mão da família. Foi nomeada para a Sonangol pelo pai? “Não, fui nomeada pelo governo.” O governo era presidido pelo pai? “Não, o governo era presidido pelo Presidente”. Até porque diz que o pai, em casa, “só preside ao almoço”.
A questão dos cargos atribuídos a si e a irmãos seus (de quem diz ter algum distanciamento) durante o mandato do homem que governou Angola durante 38 anos é afastada como sendo “ridícula”, desvalorizando a coincidência de quatro filhos de José Eduardo dos Santos terem sido escolhidos para empresas de grande relevo no país. “O trabalho que fiz na Sonangol foi um trabalho extraordinário”, repete, insistindo que é preciso olhar para lá do parentesco.
Não sabe dizer durante a entrevista quantas empresas tem, no total, quanto faturam ou quantos impostos pagam em Angola, por serem “valores muito altos” e considerar inútil fazer essa contagem, mas insiste que nunca lidou com dinheiros públicos, explicando, por exemplo, a participação da Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade angolana na sua entrada na portuguesa Efacec como uma forma de poupança da ENDE, por causa da dupla tributação.
Garante que as acusações de Ana Gomes, que começou a ser julgada esta semana por ter dito que Isabel dos Santos lavava dinheiro, são falsas e encontra uma justificação para elas na “relação muito próxima” da antiga eurodeputada com o ativista e jornalista angolano Rafael Marques. Sobre as fragilidades na prevenção do branqueamento de capitais que o Banco de Portugal encontrou no BIC (de que a empresária detém 42,5%), reveladas numa reportagem da SIC, diz que foram herança do BPN, que o banco comprou, e fala em preconceito com os investidores angolanos.
Sobre a situação política e económica em Angola, lamenta que o programa do MPLA não seja capaz de tirar o país da crise, admitindo mesmo não votar no partido em próximas eleições, se a política se mantiver. Mais que isso, revela que não vai a Angola há mais de um ano e meio. Nesse período, a Procuradoria-Geral angolana confirmou a abertura de uma investigação a decisões suas na Sonangol, mas a empresária garante que a sua ausência do país se deve ao facto de o crime ter transformado o país num local pouco seguro, com muitos assaltos e homicídios. Mesmo assim, insiste: “A situação política em Angola hoje é uma caça às bruxas, disso não há dúvidas. Se me pergunta se há uma perseguição à família do antigo Presidente dos Santos, sim, há, isso é claro”.
A “política negativa” de Ana Gomes e o nascimento da UNITEL
Esta semana, a antiga eurodeputada Ana Gomes começou a ser julgada por tê-la acusado de lavar dinheiro. E disse em tribunal que tinha provas disso mesmo e que as tinha entregue à Procuradoria-Geral da República. Ficaria surpreendida se o Ministério Público português abrisse um inquérito com estes elementos?
Ontem [quarta-feira] acompanhei algumas das declarações que Ana Gomes fez em tribunal e foi realmente surpreendente porque havia uma série de contradições. Aliás, mais surpreendente foi ainda que as próprias provas — ou supostas provas — que ela dizia trazer, no fundo não passavam de cartas que ela própria tinha escrito, com uma quantidade de alegações falsas, e que a prova que ela trazia, que era prova que ela dizia ser um relatório do Banco de Portugal, dizia exatamente o contrário. Eu não estive presente no tribunal, portanto não sei dizer em primeira mão, mas foi interessante ver que, numa das passagens, ela ou alguém da equipa dela refere o pagamento feito pela Efacec. O investimento que fizemos na Efacec cá em Portugal foi, sobretudo, do meu ponto de vista, motivado por eu ser empresária no setor das telecomunicações há mais de 20 anos. Nós construímos uma grande rede de telecomunicações em Angola, uma rede que tem tanto a parte móvel como a parte da fibra ótica. E acredito que é um projeto bem sucedido e que já tinha atingido um nível de maturidade suficiente e era minha vontade migrar para o ramo da energia. Porque, quando eu olho para África, e principalmente, para o meu país, vejo que o défice na rede de distribuição elétrica é muito grande, principalmente comparado com a rede de telecomunicações. Só para ver, nós temos mais de 1.500 geradores para pôr a funcionar a nossa rede de telecomunicações.
Portanto, depois de ter feito este percurso nas telecomunicações, realmente quis embarcar para o ramo da energia. E, para mim, a Efacec era a empresa certa, com mais de 70 anos de experiência, grande know how de engenharia e de tecnologia. Também sou engenheira, gosto de tecnologia — aliás, a maior parte dos meus projetos são sempre motivados pela parte tecnológica e muito menos pela parte comercial. Quando surgiu essa oportunidade, pensei que, para Angola e para África, poderem ter um investidor africano presente numa empresa de grande know how no ramo da energia seria uma grande mais valia. Porque era a forma mais natural de construir uma ponte entre África e Europa e poder trazer know how de redes de distribuição elétrica para Angola e para África.
E as referências que Ana Gomes faz a essa entrada na Efacec estão erradas?
Estão. Ela diz claramente que as minhas ações foram pagas pelo Estado angolano ou que eu beneficiei do erário público, e é falso. Aliás, o próprio relatório que ela apresenta do Banco de Portugal diz claramente que os 40 milhões pagos pela ações da Efacec pela Niara são suprimentos de sócios meus, vindos de mim — não vindos de nenhuma conta do Estado e não vindos de nenhuma conta de erários públicos. Pelo contrário, vindos de mim e dos meus dividendos, declarados, sobre os quais eu havia pago impostos e licenciado os capitais. Está tudo no relatório. É só para lhe dar um exemplo de quanto as alegações de Ana Gomes são falsas.
Nomeadamente quando disse que controla a Global Media através de um testa de ferro?
Pois, eu inclusive tive de ir perguntar à minha equipa exatamente o que era a empresa Global Media, porque confesso que acompanho os jornais em Portugal, conheço as revistas, mas sou como qualquer outro leitor, não tenho ciente quem são as sociedades por trás dos jornais ou das revistas portuguesas, portanto nem sequer sabia do que é que ela estava a falar, foi uma afirmação falsa. E ela tem vindo há muitos anos… Acho que há uma estratégia política muito negativa dela. Aliás, não estranhei ver o Rafael Marques como testemunha da Ana Gomes, há uma relação muito forte entre Ana Gomes e o Rafael Marques, há muitos anos. O Rafael Marques é conhecido como sendo um opositor e um ativista contra o ex-Presidente José Eduardo dos Santos, durante muitos anos conduziu estas campanhas. E, efetivamente, eles têm uma relação muito próxima. A Ana Gomes, durante muitos anos, era eurodeputada e era muito difícil para mim poder tomar outro tipo de atitude porque, enfim, ela gozava de um poder político, de uma capacidade de influência e, sobretudo, gozava também de imunidade. E, para mim, foi bom o julgamento.
Mas então, pelo que diz, ficará surpreendida se o Ministério Público abrir um inquérito em relação a si com os tais elementos que Ana Gomes diz que entregou.
Eu trabalho em Portugal desde 2006. Estamos em 2019, portanto são muitos anos. Eu investi em Portugal pela primeira vez um bocadinho antes da crise, depois houve a crise em 2008. E sempre trabalhei em Portugal de uma forma transparente. Acho que uma coisa que, se calhar, é diferente entre mim e outras pessoas é que eu comunico os meus negócios, eu não me escondo. Quando fiz o investimento na NOS — aliás, nem começou pela NOS, começou por ter comprado uma pequena participação na Optimus, depois comprei uma participação na ZON, depois trabalhei com o Paulo Azevedo para podermos fazer uma fusão de ambas sociedades, e isso foi um projeto que durou cinco, seis anos, e nunca me escondi. Aliás, deve imaginar que, para poder trabalhar em Portugal desta forma, obviamente, passei sempre por bancos e pelos reguladores e pelas autoridades. E são muitos anos, estamos a falar de mais de uma década.
Então vamos recuar ainda mais. O seu primeiro grande negócio em Angola foi a Unitel, certo?
Sim. Eu acho que é engraçado porque as pessoas acham sempre que o negócio é grande, mas eu gosto sempre de corrigir porque nenhum negócio começa grande. Todos os negócios começam pequenos e depois é torná-lo grande dependendo do seu trabalho ou da equipa que tiver, ou também do mercado, porque é preciso ter um bocadinho de sorte. Se apanhar uma crise económica, como nós estamos a ter agora em Angola, por melhor que seja a sua equipa e a sua ideia, obviamente que não vai crescer. E Angola teve um período de crescimento muito forte entre 2006 e 2014, que, sem dúvida, também fez com que a Unitel crescesse.
E como é que teve a ideia?
Primeiro, eu sou engenheira. Estudei engenharia em Inglaterra e, no último ano da faculdade, fiz duas teses, investiguei duas coisas. Por um lado, a reciclagem, porque gosto muito do lado ambiental, sou muito preocupada com as questões do ambiente. E um segundo trabalho foi sobre as telecomunicações sem fio. Isto estava muito no início, estamos a falar de 1992, 1993, 1994. Depois de acabar a faculdade trabalhei alguns meses numa grande empresa que, na altura, se chamava Coopers, que depois se fundiu com a Pricewaterhouse e hoje é a Pricewaterhouse Coopers. E, obviamente, para qualquer aluno, conseguir entrar numa destas big five [as cinco grandes] — as McKinseys, as Coopers e as Arthur Andersen —, era realmente o grande sonho. Eu tinha conseguido entrar, entrei como junior consultant, fiquei lá algum tempo, mas senti que, para mim, o que era importante era voltar para Angola. E voltei. Angola estava em guerra — isto foi logo depois das eleições que, infelizmente, foram disputadas e depois originaram mais 10 anos de guerra, portanto 1992 a 2002. Voltei para Angola em 1995, apesar da guerra, porque acreditava que podia fazer qualquer coisa lá. Quando cheguei, não quis ter um emprego, porque já tinha tido este emprego, que era o melhor emprego que um jovem podia imaginar. Resolvi trabalhar por conta própria e abri, com um amigo meu que também é formado nos Estados Unidos, uma empresa de logística. Decidimos fazer uma startup. Fazíamos distribuição de bebidas. Tínhamos comprado dois camiões em segunda mão, eu vendi o meu carro, ele alugou um armazém e começámos. E, para controlar as encomendas, tínhamos comprado nos Estados Unidos um sistema da Motorola. E começámos rapidamente a perceber que o sistema da Motorola em si…
"Era um negócio importante e era por causa disso que era importante eu poder associar-me com outras entidades. Eu tinha capitais, porque obviamente tínhamos feito este negócio de distribuição e nós éramos o segundo maior distribuidor da Cuca, a cerveja angolana."
Exatamente, são walkie-talkies, mas o walkie-talkie é o utilizador. Depois tu és um provedor do sistema, montas uma rede onde tens um mecanismo de controlo e podes vender os serviços a terceiros. Então começámos a vender serviços a, por exemplo, empresas de construção civil, que queriam comprar, alugavam-nos 15 aparelhos. Ou empresas de segurança, alugavam-nos 50 aparelhos. No fundo, eles faziam uma espécie de leasing dos equipamentos e nós geríamos a rede, geríamos as frequências, obtivemos frequências junto do Ministério das Telecomunicações. E foi aí que comecei a ter os meus primeiros contactos com as frequências e o Ministério das Telecomunicações e comecei a ouvir que havia uma vontade do governo em liberalizar o setor das telecomunicações, porque a empresa estatal móvel, que era a Movicel, já existia desde 1991, estamos a falar agora em 1997 e 1998. E, quando ouvi isto, fiquei muito curiosa e houve o lançamento de um concurso.
Nessa altura, como é que escolheu os seus sócios?
No fundo, tive alguma dificuldade no início em conseguir capital.
Tinha 25 anos?
Um bocadinho mais. Comecei a trabalhar aos 20. Fui para a escola aos 4 anos, acabei a universidade com 20.
Eu estava mais a fazer as contas ao facto de, naquela altura, ter vendido o carro para comprar camiões, mas, uns anos depois, estar a entrar neste negócio. Já sei que, quando começa, não tem a dimensão que tem agora, mas, ainda assim, teria uma dimensão importante, em termos de capacidade financeira.
Era um negócio importante e era por causa disso que era importante eu poder associar-me com outras entidades. Eu tinha capitais, porque obviamente tínhamos feito este negócio de distribuição e éramos o segundo maior distribuidor da Cuca, a cerveja angolana. No fundo, tínhamos uma empresa logística, chegámos a ter cerca de 30 camiões a fazer distribuições diárias, fizemos centenas de milhares de caixas de distribuição ao ano e era um volume muito significativo. E vendi depois a minha participação a este amigo quando decidi sair da parte logística, porque já não era algo que me motivava, estava muito mais entusiasmada com a parte das telecomunicações, e tinha algum capital.
E os seus sócios? Procurou-os pela experiência que pudessem ter ou era só pelo capital?
Inicialmente, a rede que queríamos construir — porque aquilo foi um concurso, nós tínhamos de concorrer e dizer que tipo de rede queríamos construir — era relativamente pequena. O investimento, apesar de ser relevante, não era um investimento impossível. Naquela altura, que era o início do GSM, havia uma grande concorrência entre os diferentes vendors, pessoas que vendem equipamento, entre a Ericsson, a Nokia, etc. E muitos desses vendors também ofereciam vendor financing, ou seja, eles percebiam, talvez melhor que nós, o potencial do negócio e muitos dos equipamentos, ou, pelo menos, a proposta de equipamentos com que trabalhámos, foi vendor financing. Ou seja, eles vendem os equipamentos, nós pagamos um depósito e depois, em função do trabalho, da rede, pagaríamos o resto. Mas eu percebi também que precisava de um parceiro do setor. E percorri vários países, fui à África do Sul, fui à Suécia, falei com a Vodafone cá em Portugal, falei com várias entidades. Mas Angola, naquele momento, estava em guerra. Estamos a falar em 1998, 1999, 2000. São os anos de uma guerra brutal. Quando se lia as notícias no Economist, dizia “75% do território angolano está ocupado pela UNITA e o governo vai cair daqui a dias”. Portanto, não havia interesse para o risco Angola e foi muito difícil. Depois, fiz alguns contactos com a Portugal Telecom, que, na altura, tinha um projeto da lusofonia, queria estar presente em mais países que falassem português — e foi aí que eles compraram 25% da Unitel e tornaram-se nossos parceiros. Mas vou contar-lhe como é que a empresa nasceu: nós tínhamos uma sala talvez duas vezes maior que esta. E a nossa loja era uma vez e meia maior que esta sala. E éramos para aí 15 pessoas. E é preciso perceber que, em 1999 ou 2000, ninguém imaginava o que é que o móvel seria. Primeiro porque os telefones móveis não trabalhavam assim tão bem, ficavam quentes, a bateria acabava rápido, ouvias aquilo com ruído, portanto, ninguém podia imaginar que um dia íamos usar os móveis para mandar documentos e fazer filmes e entrar nas redes sociais. É um novo mundo.
O concurso falhado e a escolha direta: “Seria realmente extraordinário que alguém tivesse de deixar o seu país por ter um parente no governo”
Seja como for, essa sala pouco maior que esta e a loja foram suficientes para convencer quem teve de vos atribuir a licença. Porque há pouco falava de um concurso, mas depois acabou por não haver concurso.
Houve, houve um concurso. Houve várias propostas, a nossa foi a mais ambiciosa, a mais estruturada, nós corremos mais riscos. Fomos mais audazes e apresentámos um projeto que era mais sólido.
"Como angolana, seria impossível trabalhar em Angola e encontrar-me numa situação em que o titular do poder executivo, num momento ou outro, não assinasse um decreto em que uma das minhas empresas tivesse a trabalhar."
Quantas propostas havia na altura?
Na altura havia cinco propostas.
E o concurso foi mesmo até ao final?
O concurso foi até ao final. Depois, com a situação política que houve e a situação da guerra, acabou por não se dar continuidade.
Ao concurso…
Ao concurso.
Então o que acaba por acontecer é uma espécie de ajuste direto por causa dessas circunstâncias.
Houve depois uma análise das propostas que estavam em cima da mesa e esta era a proposta mais sólida. Nós éramos — e somos — muito apoiados pela Ericsson, na Suécia. Tive várias reuniões com a Ericsson e acho que a diferença foi que a Ericsson realmente acreditou no projeto que eu estava a promover.
Foram estas condições todas que acabaram por fazer com que se criasse esta coincidência de ser o Presidente José Eduardo dos Santos, seu pai, a atribuir esta licença, depois daquele concurso falhado.
Eu acho que, em Angola, a nossa lei faz com que o Presidente da República, que é o TPE — o titular do poder executivo — efetivamente seja a última pessoa do governo que ratifica todas as concessões ou licenças ou outro tipo de contratos que existem em Angola. Ou seja, como angolana, seria impossível trabalhar em Angola e encontrar-me numa situação em que o TPE, num momento ou outro, não assinasse um decreto em que uma das minhas empresas estivesse a trabalhar. A não ser que eu decidisse não viver em Angola, emigrar por alguma razão estranha. Obviamente, sendo angolana, acredito que tenho os mesmos direitos que qualquer outra pessoa, portanto seria realmente extraordinário que alguém tivesse de deixar o seu país por ter um parente ou estar relacionado com alguém que esteja no governo. Isto é a lei de Angola. Agora, o facto de a lei de Angola dizer que os decretos são assinados pelo TPE, que alguns decretos são assinados pelo TPE e alguns são assinados pelos ministérios, isto não quer dizer que Angola não tem processos. Porque há aqui um grande erro que é feito e eu acho que é aí que a Ana Gomes e o Rafael Marques têm vindo a confundir muito a opinião pública em Portugal, na Europa, nos Estados Unidos. É que há uma grande falta de conhecimento dos processos e dos procedimentos em Angola. Então, parte-se do princípio que em Angola não há leis, que em Angola não há processos, não há procedimentos, ou seja, que há apenas um Presidente que assina um papel e já está.
Aqui houve um procedimento, mas, como tinha explicado, por várias circunstâncias, esse concurso não foi concluído. E, portanto, há uma decisão direta do governo de, olhando para aquele concurso, mas sem o procedimento desse concurso, tomar uma decisão.
Vou continuar. Quando eu digo que em Angola há leis e há procedimentos — e, efetivamente, há uma falta de conhecimento —, acredito que esta falta de conhecimento talvez seja também por culpa nossa, dos angolanos e do nosso governo e das nossas instituições, que não sabem comunicá-lo bem. Primeiro, para uma licença de telecomunicações há um instituto de comunicações, que é o INACOM. Quem atribui as frequências e quem valida se efetivamente as propostas são ou não boas e se aquilo que está a ser proposto pelos parceiros pode ser construído, em primeira instância é o INACOM. Depois do INACOM há o Ministério das Telecomunicações, que também tem de validar, ver, etc. Depois, há o Ministério das Finanças. Depois disso há o Conselho de Ministros. E depois do Conselho de Ministros, em última instância, depois de estar o projeto validado, negociado e as condições acordadas e de o governo ter feito todas as diligências, só em última instância é que o Presidente da República assina. Portanto, o ato de assinatura de um Presidente da República de um decreto é uma formalidade. Antes disso, existe todo um processo administrativo que é bastante longo. Em relação à Unitel, deram-me a licença de 15 anos que foi atribuída em 2000. Em 2015 houve um concurso público no qual participaram quatro operadores, entre os quais a Unitel. Este concurso público, sim, conseguiu chegar a termo, porque não havia os problemas com a questão da guerra. Neste concurso público foram atribuídas três licenças de telecomunicações e, agora, há um novo concurso para uma quarta. Este concurso de 2015, que durou dois anos, foi ganho em 2017. A licença custou mais de 100 milhões de dólares e a sua atribuição foi feita pelo Presidente João Lourenço. E houve três licenças que foram atribuídas.
"Eu sei que a Ana Gomes e os media têm feito uma espécie de ruído em relação sobre se há ou não algum favoritismo em relação às licenças de comunicações e eu acabei de demonstrar que a Movicel também não participou no concurso e teve a sua primeira licença e ninguém questiona isso"
Sobre…
Mas vou continuar, porque está a falar-me de concursos de telecomunicações. Por outro lado, em Angola, a Movicel também não teve a sua licença de telecomunicações atribuída por concurso. E, agora, há cerca de um mês, o Presidente João Lourenço atribuiu sem concurso uma licença à Angorascom para ser o terceiro operador em Angola. Ou seja, eu sei que a Ana Gomes e os media têm feito uma espécie de ruído sobre se há ou não algum favoritismo em relação às licenças de comunicações e eu acabei de demonstrar que a Movicel também não participou no concurso e teve a sua primeira licença e ninguém questiona isso — nunca vi o Rafael Marques a questionar isso — e que houve efetivamente um concurso em 2017, houve três atribuições de licença, e que agora foi dada uma licença, outra vez, sem concurso.
Mas acha que há aqui um interesse de João Lourenço em fazê-lo? Acha que esta atribuição, nestes casos, sem concurso e por ajuste direto, é suspeita? É errada?
Não, quando eu digo que há um interesse, digo-o porque a lei da contratação pública permite que, em certas circunstâncias, possam ser atribuídas certas licenças ou certos contratos sem concurso. Quando há um interesse económico, quando há um interesse para o país. Não estou a falar do interesse pessoal.
Um dos seus sócios na Unitel é o general Leopoldino Fragoso Nascimento, mais conhecido como general Dino, que detém 25% da empresa. De onde é que lhe veio o dinheiro para ele ter um quarto deste negócio?
Como eu disse, a Unitel começou muito pequena.
Mas ficou muito grande…
Ficou muito grande porque todos nós reinvestimos 100% de tudo o que ganhámos durante mais de oito anos. Digo muitas vezes isto quando vou às universidades, porque falo com estudantes. As pessoas passam pela rua, veem um hotel e dizem “puxa, grande hotel, grande negócio!”. Mas o hotel não nasceu construído, não é? Hoje, olha-se para a rede da Unitel e diz-se “eh, pá, é uma grande rede”. Mas alguém teve de a construir. Ou seja, você tem de comprar as antenas uma a uma. Compra uma antena e põe hoje, compra outra antena e põe amanhã. Abre uma loja hoje, abre uma loja amanhã. Isto é um período de investimento de 20 anos.
É um investimento demorado.
É um investimento muito demorado. Agora, se me perguntar de onde é que vem o dinheiro para a Unitel investir, eu respondo-lhe: todos os anos os sócios reinvestiram. No início da Unitel, reinvestiam quase 100%. A partir do sexto ou do sétimo ano, começaram a reinvestir entre 70 a 80% do valor que ganhavam. É enorme. Nós acreditamos em Angola, acreditamos que Angola merecia ter uma boa rede de telecomunicações. E digo que foi pena que no ramo da energia não tenho surgido um player — não digo eu, mas um outro — que tivesse feito a mesma coisa. Possivelmente, hoje haveria uma rede elétrica também investida e corretamente gerida.
Mas, da parte do general Dino, acredita que ele teria capacidade, enquanto general e funcionário público, para iniciar um negócio que, é verdade, começou pequeno, mas, para todos os efeitos, não é um negócio de menor dimensão.
Como lhe disse, nós começámos numa sala que não é muito maior do que esta e que era alugada. As nossas mobílias vieram em segunda mão, algumas emprestadas. A loja onde nós começámos ainda lá está. E, de vez em quando, eu até costumo postar nas minhas redes as histórias das pessoas que começaram connosco. Ninguém pode imaginar o sucesso que uma empresa pode ter 20 anos mais tarde. Mas, da mesma maneira que ela podia ter tido sucesso, também podia ter sido um fracasso. Não se pode tomar o sucesso como sendo uma garantia. A garantia do sucesso numa empresa são apenas as boas decisões que os acionistas e que a gestão fazem. Vou dar-lhe um exemplo: a Movicel está falida.
Mas nunca questionou a proveniência do dinheiro do general Dino, que era um homem da confiança do seu pai?
Para o negócio da Unitel, o investimento inicial foi muito pequeno.
Lembra-se de quanto foi?
Números exatos não tenho, mas foi um investimento muito pequeno.
Do seu próprio capital quanto é que teve de pôr?
As contas da Unitel são auditadas constantemente e são vistas e revistas por várias instituições. Uma rede de 5 a 10 mil pessoas não é uma rede para 1 milhão de pessoas. É preciso conseguir imaginar o relógio 20 anos para trás, uma rede para 15 mil pessoas, que foi a nossa primeira rede, em que o nosso primeiro comutador era num contentor. Eram redes pequeninas, são soluções relativamente baratas. Nós começámos com uma rede pequena e, aos poucos, fomos crescendo. Começámos em Luanda, colocámos 30 antenas, eu própria andei a escolher para onde é que iam as antenas: subia aos prédios, negociava com os moradores se podia ou não colocar no terraço. Agora, se me pergunta “podia imaginar que a Unitel seria a maior empresa de telecomunicações em Angola?”, [eu responderia que] não podia imaginar, mas obviamente que tinha sempre a visão de poder fazer o meu melhor e de trabalhar o mais possível para poder construir empresas sólidas. E este sucesso foi replicado noutras coisas que também fiz, porque todos os negócios onde comecei eram pequenos e tentei ver se eles davam certo. A própria ZAP começou com uma startup.
A senhora entra na Unitel através da Vidatel, que é sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. Porquê? Porque não um veículo financeiro sediado em Angola?
Em 1998 e 1999, o sistema bancário não funcionava em Angola. Estávamos em guerra, não havia praticamente bancos a funcionar. Havia uma inflação rampante, pode ir ver estatisticamente, mas estamos a falar de uma inflação e uma desvalorização da moeda em que de manhã o câmbio era 1000 e à tarde o câmbio eram 1100. Não estou a exagerar. Era muito difícil encontrar apoios e, sobretudo, conseguir fazer parcerias para criar uma empresa em Angola sem efetivamente poder, mais tarde, ter ligações a contratos com bancos, fornecedores, etc. Angola é uma economia fechada, é muito difícil para uma empresa angolana trabalhar fora de Angola. Não é possível uma empresa angolana registar-se em Portugal, é muito difícil, precisa de permissões especiais. Para uma empresa angolana abrir uma conta num banco na Europa, tem de pedir uma autorização especial ao Banco Nacional de Angola. Porque a economia angolana ainda está um bocadinho atrasada em termos regulatórios, não foi pensada para as empresas angolanas poderem também participar em negócios internacionais. E sempre tive a ambição de criar empresas que pudessem trabalhar fora e dentro de Angola, porque não acredito em pensar só no país.
"Angola não tem acordos de dupla tributação. Ou seja, você regista uma empresa em Inglaterra e vai trabalhar em Angola. Então, paga todos os impostos iguais às empresas angolanas. E depois vai para Inglaterra com o valor e volta, outra vez, a pagar os mesmos impostos na Inglaterra."
Está explicada a razão de não sediar este veículo financeiro em Angola, mas porquê sediá-lo nas Ilhas Virgens Britânicas, que é um paraíso fiscal?
Porque em Angola não faz diferença onde está registada a sua empresa. Sabe porquê? Porque paga exatamente o mesmo imposto. Uma empresa que esteja registada nas BVI [sigla inglesa para as Ilhas Virgens Britânicas], em Hong Kong, em Lisboa, em Nova Iorque, em Luanda, pagam todas o mesmo imposto industrial. Não há diferença. Portanto, em termos de vantagens industriais é igual. Paga exatamente o mesmo. Aliás, até paga mais. Porque quando esta empresa, que está registada fora de Angola, fizer o pagamento de um financiamento ou de um dividendo, ainda cobra um imposto adicional. Portanto, ainda acaba por ter uma situação fiscal menos interessante. Naquela altura não havia bancos e montar uma empresa sem poder ter acesso ao sistema financeiro, sem poder contratualizar e sem poder fazer pagamentos, era muito difícil. Mas, para Angola, do ponto de vista fiscal, paga-se exatamente o mesmo imposto: uma empresa angolana, uma empresa das Cayman [Ilhas Caimão], da BVI, das Maurícias, de Hong Kong, de Londres, de Paris…
… as Ilhas Virgens Britânicas não faziam propriamente parte do seu circuito. Estudou em Londres, porque não fazer isso a partir do Reino Unido?
Porque infelizmente o meu país — infelizmente, uma vez mais — também tem muito trabalho a fazer nesse domínio. Angola não tem acordos de dupla tributação. Ou seja, você regista uma empresa em Inglaterra e vai trabalhar em Angola. Então, paga todos os impostos iguais às empresas angolanas. E depois vai para Inglaterra com o valor e volta, outra vez, a pagar os mesmos impostos na Inglaterra. Porque Inglaterra não reconhece que já pagou em Angola. Se você tiver um financiamento bancário e precisar de pagá-lo, isso inviabiliza-o, porque vai pagar um imposto de 35% em Angola e depois chegará a, por exemplo, França e pagará lá mais 29%. Porque França não reconhece que você já pagou os impostos em Angola. Vou dar-lhe um exemplo: a Portugal Telecom registou o seu investimento na Madeira.
Na Zona Franca da Madeira.
Exatamente. A ELF – Total, em Angola, registou o seu investimento nas Cayman e nas BVI. A British Petroleum em Angola também é uma BVI e uma Cayman. A Exxon, a Chevron, todas as empresas do setor petrolífero, todas as prestadoras de serviços, são todas empresas que estão registadas em sítios que permitem que a questão da dupla tributação não se aplique. Porque não faz sentido uma empresa ser tributada duas vezes com o mesmo imposto. Que pague uma vez aquele imposto está correto, mas duas vezes não acho correto. Por isso é que Portugal tem “n” tratados de dupla tributação. Sei que o Estado angolano tem estado a trabalhar muito nessa questão da dupla tributação, acho que isto vai ser melhorado. Quanto a impostos individuais, sabe quanto é que o indivíduo paga de impostos em Angola sobre o seu rendimento? Em Angola, o único imposto que existe é sobre o rendimento do trabalho. Qualquer outro tipo de rendimento que tiver, por exemplo de dividendos, é zero. Portanto, não há um sítio melhor do que Angola, de um ponto de vista individual, para receber dividendos. O regime fiscal angolano, nesse sentido, é bom do ponto de vista individual, porque só taxa o imposto sobre o rendimento e não taxa o dividendo.
Falemos então sobre a ZAP Distribuição. Também foi por ajuste direto que conseguiu este negócio?
Acho interessante a sua pergunta sobre o ajuste direto, tive de refletir dois minutos, porque eu ia perguntar-lhe: a DSTV, da Multichoice, foi por ajuste direto?
Não sei, foi?
Não há ajustes diretos porque não é um contrato do Estado.
A licença para fazer a distribuição não passa por um concurso?
Não. Em Angola, a DSTV não passou por um concurso. Nem a Multichoice, nem a ZAP.
Portanto, foram sempre escolhas do governo.
Não sei se foi escolha do governo. Normalmente há um operador que é de distribuição de canais de televisão. Não sei se para ver televisão por satélite em Portugal há concursos, não conheço a lei. Há concursos em Portugal?
Nós perguntávamos porque uma das críticas — e não ignoro a razão da pergunta — que mais lhe fazem e das suspeitas que mais levantam em relação a si é que ambos os espaços que acabou por ocupar como mulher de negócios em duas áreas muito importantes do país acabaram por acontecer por escolha direta do seu pai.
A distribuição de televisão por satélite em Angola não é feita por concurso público. A DSTV, da Multichoice, não tiveram concurso público e não foram escolhidas.
Nem os canais?
No caso da ZAP Viva, é um canal lusófono. É um canal que está em Angola, está em Moçambique e está em Portugal.
E não carece de licença?
Exatamente, não carece porque é um canal satélite e é um canal lusófono. Nós não somos um canal como uma TPA. É um canal de satélite e lusófono. Mas a televisão satélite e a distribuição de satélite em Angola nunca teve concursos públicos, que eu saiba. Nunca ouvi falar disso.
A entrada na Efacec com a ENDE e as acusações do ministro: “Retórica politicamente motivada”
Há pouco tentava desmontar o argumento da ex-eurodeputada Ana Gomes por causa da compra da Efacec. Em 2015, a ENDE [Empresa Nacional de Distribuição de Electricidade, estatal] participou e alavancou essa compra, certo?
Não.
Pode explicar-nos porque é que acha que não alavancou?
A ENDE não alavancou, a ENDE comprou uma participação…
… de uma empresa sua, a Winterfell.
Comprou uma participação da Winterfell, que é uma empresa que controla a Efacec. A Winterfell é um SPV, é um veículo de investimento criado para poder deter a maioria do capital da Efacec. E a ENDE comprou e pagou 16 milhões de euros e tem o equivalente em ações — da mesma maneira que eu tenho o equivalente do que paguei em ações.
"Para poder pagar o financiamento, temos de pesar contratos que nos permitam que a tributação seja eficaz. Porque se nós tivermos um regime de dupla tributação, não poderemos onerar os contratos de investimento que temos"
Foi a ENDE que teve a ideia de entrar no negócio ou foi a senhora que abordou a ENDE para entrar também no negócio?
A ENDE e a Efacec já tinham vários projetos em conjunto, inclusive um projeto de construção de uma fábrica de cabos elétricos e de uma pequena fábrica de transformadores. Porque a Efacec trabalha em Angola desde os anos 60, se não estou em erro. A Efacec sempre foi um grande fornecedor da ENDE e sempre teve relações muito próximas. Ou seja, a relação da ENDE e da Efacec é uma relação anterior à minha chegada no sentido comercial e havia planos para as duas empresas desenvolverem atividades em conjunto. E obviamente que fazia muito sentido para a ENDE participar e entrar [no negócio]…
… isso eu percebo, a minha questão é porque é que não entrou diretamente e entrou através de um veículo seu.
Acabei de explicar. A ENDE é uma sociedade angolana registada em Angola. É uma questão de lei.
Está a dizer que, por uma questão de lei, as empresas angolanas, quando querem investir num negócio em Angol, têm de passar por um empresário que tenha uma empresa que esteja num paraíso fiscal?
Não, não, não.
…têm de passar por um empresário, mesmo que seja angolano, que tenha uma empresa…
Não, não, não, não. Primeiro, a Winterfell não está num paraíso fiscal, está na Europa. Está no espaço europeu, paga IVA e paga os impostos. Portanto, a Winterfell não é um paraíso fiscal, a última vez que fui ver… [risos]
Mas tem condições especiais.
Tem, tem um regime especial de imposto, atraente, como tem a Irlanda. A Irlanda também tem e tem lá a Apple. E Portugal também já pensou nisso, enfim. A Europa permite que os países possam ter regimes fiscais mais atraentes ou menos atraentes.
Diferenciados.
Diferenciados. Mas são países que são europeus. Mas eu não tenho nenhuma sociedade offshore na Europa. Todos os meus investimentos em Portugal são detidos por sociedades europeias, não são detidos por sociedades offshore. A única situação em que nós temos, às vezes, necessidade para os investimentos de usar efetivamente outro tipo de jurisdição é quando há a questão da dupla tributação, por Angola não ter acordos de dupla tributação. O que torna os investimentos muito pouco eficazes. E também quando queremos captar financiamentos mais baratos, porque a taxa de juro na Europa é 1%, 2%, 3%, e a taxa de juro em Angola é 9, 10, 11, 12, 14, 18, 23%. Portanto, são diferenças brutais. E, para certos negócios, principalmente negócios que são a longo prazo e que são difíceis, são negócios industriais pesados, é muito difícil eles aguentarem com uma taxa de juro tão elevada como 9, 10, 11, 12%. Por exemplo, na ZAP, nós captámos um financiamento europeu de 30 milhões de euros. Agora, para poder pagar o financiamento, temos de pesar contratos que nos permitam que a tributação seja eficaz. Porque se nós tivermos um regime de dupla tributação, não poderemos onerar os contratos de investimento que temos. Isto é uma das razões porque trabalhamos em países europeus em que o regime fiscal é mais atraente. Porque se formos para um país europeu — uma Suécia, uma Dinamarca, com taxas de 40 a 50% ou uma França, a 30% — seria muito pouco eficaz em relação aos investimentos em Angola. Em relação aos investimentos que temos na Europa, todos os investimentos que tenho são feitos com sociedades europeias.
Portanto, a ENDE escolheu fazer dessa maneira para poupar?
Sim, e também porque nós montámos um financiamento europeu, mais barato, para efetivamente poder fazer um investimento na Efacec.
Lembra-se de quais foram os capitais próprios que usou nesse negócio? Porque há uma parte de 160 milhões de euros que é financiamento de bancos em Portugal. Lembra-se quais foram os capitais próprios que usou nesse negócio?
O rácio de capitais próprios no investimento agora não me lembro, mas, em termos de pagamentos e desembolsos, já fizemos uma grande parte.
Portanto, os bancos meteram dinheiro, a ENDE — que, para ficar claro, é a empresa nacional angolana de distribuição de energia — pôs 16 milhões…
E já pus acima de 50 milhões de euros. Mais, 60… Já pus mais. Mas não tenho os números exatos.
Atendendo à sua explicação, por que razão o ministro angolano da Energia diz que os interesses do Estado angolano foram gravemente lesados neste negócio?
[Suspira] Querem entrar para a parte política. [Risos]
"O ministro [João Baptista] Borges era ministro quando a ENDE entrou e é o mesmo ministro que disse a mesma coisa. Portanto, não acredito que ele tenha mudado de ideias. Acho que hoje é uma retórica politicamente motivada."
Não, só estou a perguntar porque, obviamente, ele está a dizer que a ENDE não devia tê-lo feito da maneira que fez.
Infelizmente, esta parte não tem a ver com a parte do negócio. Em Angola…
Peço desculpa, mas acho que tem.
Não, não tem.
A ENDE tomou uma decisão de negócio, tomou uma decisão económica, e o ministro da Energia diz que essa decisão foi gravemente lesiva para os interesses do Estado angolano.
Pois, mas foi o mesmo ministro que tomou essa decisão. Foi ele. Ou seja, o ministro [João Baptista] Borges era ministro quando a ENDE entrou e é o mesmo ministro que disse a mesma coisa. Portanto, não acredito que ele tenha mudado de ideias. Acho que hoje é uma retórica politicamente motivada. E disso não há dúvidas, por isso é que perguntei se queria entrar pela parte política. Mas tenhamos bem claro: o ministro que considerou que o investimento na ENDE era positivo e que haveria uma mais-valia em dar acesso à ENDE a know-how tecnológico para construir redes… Angola vai investir nos próximos 20 anos, na rede elétrica, talvez mais de dez mil milhões. Quem sabe, 15 mil milhões. Em transformadores, em redes de transmissão, em postos de alta tensão, média tensão… Portanto, faz todo o sentido que um país destes, que tem tanta rede elétrica para construir, efetivamente tenha acesso a know-how e a tecnologia. E foi este mesmo ministro que decidiu o investimento da ENDE, não foi outro.
Deixe-me perguntar por outro assunto: o Estado angolano também se sente lesado na parceria da Sodiam com a De Grisogono.
Eu não faço parte da Sodiam nem da De Grisogono. A Sodiam é uma empresa 100% estatal, da De Grisogono não sou sócia. Isto já foi várias vezes dito…
Estou a perguntar-lhe porque, obviamente, tem uma ligação, o seu marido é uma pessoa que detém…
Sim, mas o meu marido acho que não se importa nada de falar sobre essa questão. É um negócio de que ele, com certeza, não se importará de falar.
Mas pode ter uma opinião sobre isso. Ia-lhe perguntar se esta parceria entre uma empresa estatal que regula a venda dos diamantes e uma joalharia suíça com o seu marido… Acha que defende os interesses do Estado angolano?
Honestamente, acho que são duas coisas que não têm nada a ver. É tipo você dizer-me… Está-me a falar de dois tópicos que são completamente diferentes. Na minha opinião, isso é um aglomerado de ideias.
Mas existia uma lei dos clientes preferenciais dos quais fazia parte, também.
É como lhe digo, a questão da De Grisogono poderá com certeza conversar com o meu esposo, que acho que terá o maior gosto em fazer uma entrevista consigo. É realmente um assunto sobre o qual ele poderá conversar. Prefiro falar sobre os negócios que conheço, que domino. E quando me pergunta se o Estado angolano foi lesado em relação a entrar na Efacec, eu digo que não. Hoje, acho que é um erro estratégico que um país que vai construir milhares de quilómetros de rede de eletricidade não queira ter acesso a know-how de construção de rede. Nós temos um forte interesse, por exemplo, em países do Médio Oriente, que também têm vontade de construir rede. Por exemplo, com a Efacec, nós somos líderes no Bahrain, fomos há pouco tempo certificados para fornecer transformadores no Qatar… Ora, é muito difícil, porque aquilo faz muito, muito calor e, como devem imaginar, os transformadores também aquecem e é deserto, há muita poeira, muita areia… E é muito difícil de um ponto de vista tecnológico criar-se uma solução de um transformador que consiga aguentar aquele clima. E fomos certificados, portanto seremos um dos fornecedores oficiais da rede do Qatar. Somos já o líder no Bahrain e temos um grande interesse nestes países do Médio Oriente que querem efetivamente continuar a construir redes elétricas e que veem na Efacec um grande potencial. E inclusive estão muito interessados em entrar no capital da Efacec e associarem-se ao projeto, porque reconhecem efetivamente que é um bom projeto, que é uma boa empresa.
"[O governo] não era presidido pelo meu pai, era presidido pelo Presidente da República. Infelizmente, que eu saiba, lá em casa ele só preside ao almoço. Porque é importante fazer esta distinção. É preciso distinguir a pessoa da função. Ser Presidente é uma profissão, é um trabalho. É como eu, sou empresária.
Sonangol: “Fiz um trabalho extraordinário”
No tema energético, há a Sonangol. Aí foi escolhida diretamente pelo seu pai.
Não fui escolhida pelo meu pai.
Não foi? Então como foi?
Não, não fui escolhida pelo meu pai.
Foi escolhida pelo governo angolano…
Fui escolhida pelo governo angolano.
E quem é que era o Presidente de Angola na altura?
O governo angolano não é uma pessoa. O governo angolano são várias pessoas.
Durante 36 anos [até àquela altura] com uma pessoa à cabeça…
Durante 36 anos com um Presidente da República e durante 36 anos com governos feitos por vários ministros, vários secretários de Estado…
Mas, para todos os efeitos, mesmo que reformulemos os termos, o facto é que foi para a Sonangol após a nomeação de um governo que era presidido pelo seu pai, José Eduardo dos Santos.
Não era presidido pelo meu pai, era presidido pelo Presidente da República. Infelizmente, que eu saiba, lá em casa ele só preside ao almoço. Porque é importante fazer esta distinção. É preciso distinguir a pessoa da função. Ser Presidente é uma profissão, é um trabalho. É como eu, sou empresária. É um trabalho, é uma profissão. E isto é o que é, era a profissão dele, era o que ele fazia. Mas é preciso distinguir a questão de filho e profissional. Nós somos todos adultos, quando diz filha… Eu tenho cinco filhos. Claro que vou ser sempre filha de alguém e que os meus filhos também vão ser sempre meus filhos e que você também é filho de alguém. Mas não é isso que nos classifica. E nós temos, com as pessoas que nos rodeiam, dois tipos de relações: temos uma relação de amizade ou de família, e depois podemos ter relações profissionais.
Mas não acha que se podem misturar essas duas dimensões? Afinal de contas, numa democracia que se projeta como pluripartidária — evidentemente que em construção, após muitos anos de guerra —, acha que é saudável o governo presidido pelo Presidente nomear…
Portanto, você acha que os Presidentes não deviam ter filhos ou então, se tiverem filhos, que os filhos não deviam morar naquele país. Ou então, que mais? Os Presidentes podem ter filhos, eles podem morar no país, mas os filhos dos Presidentes não devem ter os mesmos direitos que os outros cidadãos? Ou seja, é ridículo. Estamos a entrar à beira do ridículo. Acho que é preciso voltar a ter um bocadinho de bom senso.
Mas não havia mais ninguém capaz de desempenhar a sua função?
Desculpe, vamos voltar ao bom senso. Acho que os países têm processos, têm regras e há decisões. Desde que as decisões sejam transparentes, as regras sejam cumpridas e os processos sejam claros e as pessoas percebam as decisões, não interessa se você é filho, sobrinho ou um desconhecido. Porque isto é relevante.
Sem querer duvidar das capacidades técnicas, porque nem teria capacidade para isso, não acha que é coincidência que o seu irmão José Filomeno dos Santos tenha sido nomeado para o Fundo Soberano de Angola e também os seus irmãos, Tchizé dos Santos e José Paulino, tenham conseguido a licença para gerir o canal 2 e o canal internacional da TPA? São quatro filhos do Presidente…
Digo-lhe uma coisa: o que é engraçado é que você vai exatamente no sentido que eu digo. Não interessa se há ou não um processo, se há regras, se há transparência na decisão, se efetivamente a decisão está substanciada ou não. Isso não interessa. Isso vamos pôr tudo para o lixo. Vamos só dizer que é filho.
Não o estou a fazer, mas para todos os efeitos…
Eu sei que não está fazer, está a fazer uma pergunta.
…o ponto factual aqui, além de todos os outros que temos todo o interesse em ouvir, é que há quatro filhos do agora ex-Presidente que ficaram à frente de três organismos públicos importantíssimos. A Sonangol, que gere a maior fonte de riqueza da economia angolana, e também o Fundo Soberano e a TPA. Não é coisa pouca.
Então vou-lhe perguntar uma coisa muito simples: em que ano é que fui nomeada para a Sonangol? 2016.
O seu pai anuncia que vai sair em 2018 e três meses depois é nomeada.
Portanto, sou nomeada em 2016 e saio em 2017. O meu pai é Presidente há quantos anos?
Nessa altura já era Presidente há 35 anos.
Então ele esperou 35 anos para poder nomear, não me nomeou antes? Está a ver? É que estamos aqui a entrar numa consideração quase ridícula. Ou seja, estamos a ignorar tudo o resto, porque só nos interessa a ligação familiar.
Nomeou na altura em que já era Presidente a prazo. Foi três meses depois de anunciar que ia sair do lugar.
Sim, mas o que é que o impediu de nomear antes? Nada. Se calhar, começaríamos a história do princípio, porque acho que todas as histórias que são boas merecem ser contadas, principalmente porque há uma questão que é importante e que colocou, que é a Sonangol. A Sonangol sempre foi o pilar da economia angolana, sempre foi onde a economia angolana se apoiou para poder, efetivamente, ter pujança e conseguir reconstruir o país. O seu antigo administrador, Francisco Lemos, meu antecessor, faz um diagnóstico em que anuncia com alguma gravidade que a Sonangol estava numa situação muito difícil, quase de pré-falência. O engenheiro Manuel Vicente foi presidente do Conselho de Administração da Sonangol durante quase 12 anos ou mais, portanto, no fundo, ele é que geriu a Sonangol, ele é que controlou a Sonangol, mandou na Sonangol. Acho que trabalhou lá mais de 14 anos e esteve no conselho de administração muito tempo.
Funções que acumulou com o cargo de vice-Presidente da República…
Não, acho que não chegou a acumular. Acho que a nossa lei não permite e ele não chegou a acumular. Foi exatamente quando ele deixou de ser que foi nomeado Francisco Lemos, que efetivamente faz o diagnóstico um mês e meio ou dois depois da sua entrada e diz que a empresa está numa situação de pré-falência. Nesta altura, o governo — neste caso, o Ministério das Finanças — começa a olhar para uma série de soluções que poderiam ser encontradas para o setor petrolífero, porque era importante atrair mais investimento, havia receio que a produção baixasse. E começou a conversar com vários atores da economia. Eu fui uma das pessoas com quem o Ministério das Finanças conversou, para poder propor soluções e ideias do que poderia ser melhorado no quadro do setor petrolífero.
"Então ele esperou 35 anos para poder nomear, não me nomeou antes? Está a ver? É que estamos aqui a entrar numa consideração quase que ridícula. Ou seja, estamos a ignorar tudo o resto, porque só nos interessa a ligação familiar."
Porque é que a chamaram? A sua área de especialidade na altura era a das telecomunicações, essencialmente.
Há muitos anos que sou uma empresária líder em Angola. Tenho, obviamente, os meus investimentos em telecomunicações, mas tenho vários investimentos. Tenho feito investimentos de sucesso. Hoje sou o maior empregador privado do país. Sou um dos maiores pagadores de impostos privados, em Angola. Não a título privado, mas a título empresarial.
Mas então porquê ser chamada para a Sonangol e não outra pessoa?
Um momento. Eu não sou chamada naquela altura para a Sonangol, de todo. O Ministério das Finanças fala com várias pessoas, três ou quatro, e pede que seja feita uma reflexão sobre o que pode ser melhorado no setor. E fala comigo na qualidade de investidora, de empresária angolana, de grande contribuinte. [Para saber] como é que poderia ser melhorada a atratividade do próprio setor petrolífero, na minha ótica. Eu tenho uma empresa de consultoria, que se chama Wise, e que trabalha há muitos anos na reestruturação de empresas. E fizemos esta reflexão. Nesta reflexão, eu apresentei, com a minha empresa Wise, um redesenho do setor petrolífero em Angola, onde a nossa consideração, a minha consideração, é que era importante separar a função da concessionária da função do regulador e da questão da operadora.
Ou seja, nós tínhamos uma Sonangol num setor petrolífero onde havia uma única unidade, que era a própria Sonangol, que era concessionária, mas era ela também que atribuía os blocos [de exploração] e era ela também que fazia a relação com os investidores. E da análise que havíamos feito na nossa empresa, uma das coisas que achámos é que isto levava a um conflito de interesses. Então, fizemos uma proposta de redesenho do modelo que era muito high-level naquele momento. Eles gostaram, acharam que era muito interessante e o governo decidiu criar a comissão de reestruturação do setor petrolífero. A Wise foi convidada a fazer parte como consultor técnico e desenvolvemos o trabalho que foi o redesenho que hoje deu origem à Agência Nacional de Petróleos, que passou a ser a concessionária, que definiu melhor os limites do Ministério dos Petróleos, que passou a ser mais um órgão legislador e que, ao mesmo tempo, definiu que a Sonangol deveria virar-se definitivamente para a questão operacional. Foi esta a proposta que nós fizemos e o Governo contratou-nos, contratou a minha empresa e contratou-me a mim para trabalhar neste projeto.
Foi um projeto que durou vários meses, terminou em março. E nós fomos pagos. O contrato foi de cerca de 8 milhões de dólares, que foram divididos pelas diferentes prestadoras do serviço. Depois disso, entregámos o trabalho e fizemos a apresentação. E esta comissão, que integrava o ministro das Finanças, o ministro dos Petróleos, o governador do Banco Nacional, havia várias entidades, tomou conhecimento do trabalho e a situação da Sonangol era cada vez mais crítica. Nesta altura, um dos pedidos que nos é feito, como consultores, é de recrutarmos, ou ajudarmos o governo a recrutar, uma equipa de gestão para a Sonangol.
Coisa que eu faço com os outros consultores, não fiz sozinha. Fizemos em conjunto, com muita ajuda também da Boston e da PwC. Vamos ao mercado das petrolíferas internacionais e tentámos identificar quadros angolanos que tenham sido formados nos petróleos e que estivessem a trabalhar na Exxon, na Total, na Esso, que tivessem atingido já um alto nível na sua carreira, que estivessem já próximos da liderança. Fizemos uma espécie de head-hunting e conseguimos 5 ou 6 profissionais.
E o facto de depois terem vindo a ser coordenados, chefiados por si acabou por ser aliciante nessa proposta?
Não! Neste momento, nós fazemos o trabalho de headhunting e uma das perguntas que fizemos ao governo é se havia alguma restrição de nacionalidades. Se podia o Presidente do Conselho de Administração da Sonangol ser uma pessoa estrangeira, se havia algum problema um CEO ser alguém de fora.
Mas o head-hunting que estavam a fazer também era para esses cargos?
Era para administração e para CEO, exatamente. Era isso que estávamos a fazer e trouxemos várias propostas, porque, no início, a nossa pergunta foi se haveria algum problema de a Sonangol ser um bocadinho como a Emirates, no fundo ir buscar alguns quadros a uma BP, ou à Shell.
E qual foi a resposta então?
Foi que sim, que não havia problemas.
Ou vir buscar à Galp?…
Ou à Galp.
Portanto poderia haver gente de todos os sítios do mundo, desde que competentes para desempenhar esses cargos.
Sim, porque a empresa estava numa situação muito difícil. Mas nós, felizmente, conseguimos encontrar um grande número de angolanos, suficiente. E encontrámos algumas pessoas para CEO. No entanto, os nomes que apresentámos para CEO, ao nível da comissão, muitos deles eles não se sentiram confortáveis…
Nenhum deles era o seu?
Não! (risos) Não. Porque eu não tinha ambição nenhuma de largar aquilo que faço. Primeiro, porque gostava e gosto das empresas que faço, sou apaixonada.
Mas a Isabel dos Santos cumpria os próprios critérios do vosso head-hunting?
Eu vou (risos) continuar. Vou continuar a explicar um bocadinho.
Mas podia responder. Sente que cumpria? Sente que tinha condições?
Ah, sem dúvida. Não tenho dúvida que tenho…
Então porque não propôs o seu nome?
Não, não propus o meu nome porque eu tenho empresas nas quais sou responsável por um grande número de pessoas e trabalhadores. As decisões que eu tomo são decisões importantes, não são decisões pequenas, tenho pessoas que confiam em mim. Tenho equipas que trabalham comigo todos os dias e dependem muito das minhas decisões…
Então porque é que aceitou?
Mas vou continuar.
É que não faz muito sentido, não é? Eu percebo isso: tem tantas responsabilidades fora da Sonangol, que não se quis autopropôr, mas depois aceitou…
Eu vou responder. Não, não. Fui, fui procurar os melhores e entreguei a lista…
Mas aceitou, não é?
Vou continuar. Isto estamos a falar em março de 2016. Entregámos uma lista, entregámos nomes. E o Governo fez-nos dois pedidos: eles tinham gostado muito de ter trabalhado comigo e com um dos consultores que era um dos partners da Boston. E pediram-me especificamente se eu e este partner da Boston poderíamos – porque estávamos a representar as nossas empresas, eu estava a representar a minha consultora, a Wise, não estava lá como Isabel dos Santos – assumir a liderança da Sonangol e fazer a liderança daquela equipa. Houve uma consulta interna, a nível da Boston, para ver se era ou não possível eles fazerem uma cedência desse partner para poder trabalhar e assumir. Porque haveria um cargo de CEO e outro de chairman. Houve este pedido e uma avaliação interna da Boston. Isto não é atípico: a McKenzie fez isto noutras empresas petrolíferas, a Boston também acredito que já o tenha feito. Não é atípico as consultoras cederem os quadros para poderem implementar um parte dos projetos que estão a ser propostos.
"Já tinha muitos negócios, muitos deles bem sucedidos, portanto não ia para a Sonangol porque precisasse. Mas havia um sentido de missão. A situação estava tão crítica e eu acho que eu tinha conhecimento do quão grave era que ali exigia-se um sentido de missão."
Mas depois o CEO da petrolífera acaba por ter mais de uma dezena de anos no setor…
Já lá chego. No caso do partner da Boston, eles decidiram que não podiam aceder a este pedido e ele não pôde entrar. No meu caso, estamos a falar em março, a minha primeira resposta foi não. Não, porque – para além de ter cinco filhos e empresas, etc, família – era muito difícil largar o que estava a fazer para continuar. E a situação da Sonangol continuou a degradar-se até junho. E em junho a situação estava muito crítica.
Mas o que aconteceu nesses meses? O convite continuou no ar e a sua negativa também? Ou chegaram a ser convidadas outras pessoas?
Não, o convite continuou no ar. Eles continuaram à procura de outras pessoas. Mas havia um sentimento muito forte…
Através da sua consultora também?
Não só, mas também eles próprios. Mas havia um sentimento muito forte de toda a comissão da reestruturação petrolífera, que era liderada pelo Edeltrudes [Gaspar da] Costa, acho que é esse o último nome dele, se não estou em erro. E ele é hoje o diretor de gabinete do Presidente João Lourenço [mas também antigo ministro de Estado e Chefe da Casa Civil da Presidência da República de José Eduardo dos Santos]. Havia um sentimento muito forte. Ele telefonou-me, falou comigo muitas horas a tentar convencer-me que era, realmente, importante que eu aceitasse, assumisse e que liderasse essa equipa. Eu aceitei. Conversei com o meu marido, fui para casa, tivemos uma conversa muito longa. Sabíamos que isto ia ter um impacto na nossa vida, que já era muito confortável. Eu não fui para a Sonangol porque não tinha uma vida confortável. Já tinha muitos negócios, muitos deles bem sucedidos, portanto não ia para a Sonangol porque precisasse. Mas havia um sentido de missão. A situação estava tão crítica e eu acho que eu tinha conhecimento do quão grave era que ali exigia-se um sentido de missão. E foi com este sentido de missão que eu e os outros administradores realmente entrámos para a Sonangol. Não pelas condições, porque tínhamos condições iguais ou melhores onde já trabalhávamos, mas porque Angola precisava. É preciso perceber que, quando eu entrei para a Sonangol, foi o pior momento de toda a sua história. O petróleo tinha estado em 28 dólares em fevereiro e eu chego à Sonangol em junho e no final do mês de junho a Sonangol está à beira de incumprir com os convénios financeiros. Ou seja, estamos a falar de mais de 20 mil milhões de dívidas quase, a incumprir com os convénios financeiros em biliões de dólares com vários bancos. Uma situação muito dramática, muito grave. Mas que foram dias muito duros. No mês de julho de 2016 não havia dinheiro para salários. Havia 800 milhões de dólares de dívidas a fornecedores, que estavam em faturas em gavetas, que não tinham sido processadas no sistema.
Tinha vários desafios em mãos…
Era muito, muito difícil… O que eu estou a dizer é: ninguém vai para a Sonangol no momento mais duro da vida da Sonangol a não ser que tenha um sentido de missão, um sentido de que pode ajudar a contribuir e fazer a diferença.E você disse e muito bem: a Sonangol é um pilar da economia angolana. E acho que é dever de qualquer angolano que possa e que tenha capacidade de trabalhar e de contribuir de fazer aquilo que eu fiz. E pergunta-me se eu tenho essa capacidade? Eu vou dizer que sim, que tenho. Tenho. Já o provei. Tenho vários negócios que fiz em Angola, cá em Portugal inclusive. A NOS não era NOS, havia uma Optimus e uma Zon. Eu fui uma das pessoas principais para fazer a fusão da NOS e da Optimus. Eu e o Paulo Azevedo trabalhámos em conjunto para que esta fusão acontecesse. Se não fosse eu e o Paulo Azevedo, isto não acontecia. Mas a NOS é uma história de sucesso.
Já lá vamos aos temas de Portugal…
Apenas para lhe mostrar. Você estava a perguntar-me se eu era a pessoa certa. Eu estou a dizer que, em termos de track record, se for ver o meu percurso não só em Angola como em Portugal, acho que é mais do que visível os trabalhos que já fiz e as coisas que contribuí e que os processos em que trabalhei, as empresas em que trabalhei geram resultados…
A exoneração política, a distância dos irmãos e a perseguição à família
É uma coincidência que 4 filhos sejam quatro pessoas certas em 4 quatro áreas fundamentais do Estado angolano?
Olhe, primeiro se começar pelos filhos… eu até acho que isso aí… é sempre uma daquelas perguntas do género… Filho você vai ser sempre. Mas você não é só filho, é muito mais do que filho. Além de filho tem outras categorias, tem outros atributos. Um deles é perceber se é ou não.
Para perceber se estas 4 pessoas eram, de facto, as 4 melhores pessoas para assumir aquelas funções. É, no mínimo, uma coincidência.
Eu não tenho dúvidas de que o trabalho que fiz na Sonangol foi um trabalho extraordinário.
E os seus três irmãos?
Eu não tenho dúvidas de que o trabalho que fiz na Sonangol é um trabalho que marcou a diferença, sei que marquei muitas pessoas que lá estiveram. Uma das coisas que nós fizemos foi avaliar mais de 6 mil pessoas. Promovemos mais de 300 jovens quadros angolanos a posições de chefias. Nós criámos dois projetos muito interessantes dentro da Sonangol. Um chamado SonaPlus e outro chamado SonaLight. O Sonaplus era para aumentar as receitas. Tínhamos um problema: havia muitas áreas, muitos investimentos que a Sonangol tinha feito que não eram rentáveis. E então era necessário aumentar as receitas. Olhámos individualmente para centenas de projetos da Sonangol, para refazer os projetos de forma a aumentar a receita. E identificámos mais de 1.000 milhões de oportunidades de aumento de receitas. E fizemos a mesma coisa nos custos. Olhámos para os custos e conseguimos diminuir em 40%. Identificámos 1,4 mil milhões de poupanças em custos e implementámos mais de 400 milhões de poupanças em custos. Vou dar um exemplo: a Sonangol tem seguros, como é normal. Seguros das plataformas, seguros dos equipamentos. Um dos grandes trabalhos que fizemos foi rever se conseguíamos sinergias e poupanças a nível dos seguros.
Conseguimos reduzir a fatura anual – que era de 1.000 milhões – para baixo de 180 milhões por ano. Uma redução muito muito grande. Uma poupança muito significativa. Fizemos de igual modo para a Clínica Girassol, uma unidade de saúde que perdia mais de 100 milhões de dólares ao ano. Reduzimos os custos em cerca de 30 por cento sem perder a qualidade do serviço. Pelo contrário, aumentando a qualidade de serviço. Portanto, acho que, em termos de trabalho, não só o trabalho que fizemos é valido como alegra ver que a equipa que está na Sonangol hoje continua a implementar os projetos que eu lá deixei.
"Hoje já uma retórica em Angola e eu acho que não é boa para Angola, não é boa para a direção em que Angola deve ir, que é culpar o passado."
Porque acha que foi exonerada?
(pausa) Por razões políticas. Houve uma motivação política muito forte do… disso não tenho dúvidas. Mas alegra-me ver que, a nível da Sonangol, eles continuam a implementar os projetos – não o antigo PCA, o Saturnino menos –, mas este novo PCA, Pai Querido, de longe tenho percebido que algumas ideias, alguns projetos, inclusive alguns dos jovens que eu tinha identificado – porque uma coisa muito gira que fizemos foi um programa de liderança, em que identificámos cerca de 264 jovens que poderiam ser líderes de futuro, porque eu preocupo-me sempre em sair, não ia para a Sonangol para ficar o resto da minha vida. Portanto, uma das minhas preocupações era identificar quem é que me poderia vir substituir, a mim e aos outros administradores. Identificámos os 264 jovens que trabalhavam na Sonangol, que eram talentos de grande potencial e que começaram a passar de área em área. E fiquei contente por ver que alguns destes jovens hoje foram para a Agência Nacional de Petróleos, foram promovidos, alguns foram para administradores de empresas da Sonangol e alguns foram para diretores. Ou seja, foi bom que agora, com este novo PCA, estes projetos tenham continuado.
As razões políticas da sua exoneração são as mesmas que encontra para o afastamento do seu irmão do Fundo Soberano, os processos e o afastamento até do Parlamento, da Assembleia Nacional e do MPLA da sua irmã, a Tchizé. São as mesmas razões políticas que vê nestas circunstâncias?
Hoje já uma retórica em Angola e eu acho que não é boa para Angola, não é boa para a direção em que Angola deve ir, que é culpar o passado. Acho que não é credível identificar um grupo de três ou quatro pessoas que sejam família do antigo Presidente como sendo as pessoas responsáveis por tudo o que está errado em Angola. Acho que isso é uma retórica falsa.
Sente que é isso que está a acontecer?
Não tenho dúvidas. Acho que é uma retórica falsa, que é uma estratégia errada. O MPLA é um partido que tem histórico, que tem obra, que fez muita coisa em Angola. O presidente José Eduardo dos Santos é o arquiteto da paz. Conseguiu consolidar a paz em Angola durante 17 anos. Durante mais de 10 anos, Angola foi um dos países que mais cresceu economicamente no Mundo. Em 2011, quando houve a crise em Portugal, muitas empresas e muitos portugueses foram trabalhar e viver para Angola. Encontraram em Angola as oportunidades pelas quais estiveram à espera, portanto Angola estava num caminho próspero. 2011, 2012, 2013, houve infelizmente a queda do preço do petróleo para 29 dólares em 2016 e a estrutura de custos da produção da Sonangol estava baseada em cerca de 80 dólares por barril. Porquê? Porque uma grande parte dos nossos poços são em águas profundas e são tecnologias caras. Mas também porque havia custos muito elevados dentro da Sonangol. Quando saí, consegui que a estrutura de custos para a rentabilidade baixasse para 40 dólares por barril. Ou seja, a partir de 40 dólares, a Sonangol tornar-se-ia rentável — antes, eram 80 dólares. Mas continua a ser uma empresa pesada. E esta estratégia de encontrar três ou quatro pessoas próximas do ex-Presidente para serem o centro de tudo o que deu errado no passado é uma estratégia errada.
Não foram os únicos a ser exonerados.
Não, não foram as únicas exonerações. Houve várias exonerações, mas muitas dessas pessoas foram depois reconduzidas e renomeadas.
Então, segundo a lógica de que falava há pouco, isso quer dizer que Angola já não está a escolher os melhores?
Não diria que é uma questão de escolher os melhores ou não. Acho que hoje, em Angola, há uma visão que é de olhar para trás — e o que é importante é ter um plano que nos leve a olhar para a frente. Como é que conseguimos aglutinar as pessoas e sair da crise? Nós estamos numa crise económica profunda e ela tem causado muitos problemas sociais. Temos tido greves e manifestações, temos a taxa de desemprego a 30%, a nossa moeda desvalorizou 200%. Todas as empresas e empresários angolanos perderam muito, muito dinheiro.
Longe de Angola há um ano e meio: “Não é um sítio seguro”
Tem ido a Angola?
Não. Não vou a Angola desde 2018.
Porquê?
Porque hoje Angola vive numa situação de insegurança. O crime está muito elevado, há muitos assaltos, há muitos assassinatos. Não é um sítio seguro.
Tem medo?
Hoje em dia, para mim Angola não seria um sítio seguro porque há muito crime.
Especificamente para si, ou genericamente?
Genericamente. Mas também especificamente para mim, sem dúvida.
Acha que podia ser um alvo por ser quem é?
Não há dúvida de que há uma tendência de fazer parecer que todos os males que havia na sociedade eram responsabilidade de um grupo pequenino de pessoas, que era o Presidente e a sua família — e mais nada. Mas acho que já ninguém acredita nisto.
Mas pensa que as pessoas se poderiam revoltar contra si?
Não, não. Gosto de pensar que, em Angola, não tenho problemas com as pessoas do dia a dia.
Tem então a ver apenas com o crime?
Hoje há um problema social porque há muito desemprego. Há muitos assaltos, as pessoas são mortas a tiro, tenho relatos diários de amigas que dizem que foram assaltadas, puseram-lhes uma arma à cabeça…
Esta sua ausência de Angola não tem nada a ver com o processo que foi aberto pela Procuradoria-Geral da República por causa de uma queixa de Carlos Saturnino relativa à Sonangol?
Já expliquei isso muitas vezes. Não recebi nenhuma notificação e não conheço esse processo.
Não teme que, se entrar em Angola, a possam querer deter ou interrogar a propósito desse processo?
Em Angola, nos últimos dois anos, tem havido detenções sem o devido processo. Houve um deputado que foi detido a caminho de um avião, sem mandado… Houve várias situações em que a justiça não agiu bem. Sim, acho que hoje, para mim, Angola não seria um sítio seguro. Mas não tem nada a ver com as populações.
Mas falou dessa retórica que aponta responsabilidades a um grupo de pessoas. Isso aumenta o risco para si?
São duas coisas diferentes e não relacionadas. Viver hoje em Angola é inseguro, mas isso é distinto da questão política.
Mas a questão política faz com que tenha algum receio de ir a Angola agora?
A situação política em Angola hoje é uma caça às bruxas, disso não há dúvidas. Se me pergunta se há uma perseguição à família do antigo Presidente dos Santos, sim, há, isso é claro.
Mas por causa dos processos judiciais?
Eu não conheço nenhum processo judicial.
Podemos falar do processo do seu irmão, que está agora a ser julgado.
Pensei que estava a falar de um processo judicial meu.
Disse que a perseguição é à família dos Santos. Acredito que não tenha sido notificada deste que correrá em relação a si, mas há outros em relação aos seus irmãos.
Para já, os meus irmãos são meus meios-irmãos, portanto não temos uma relação próxima. Conheço apenas um único processo, o do José Filomeno. É o único que conheço.
Chegou a estar em prisão preventiva muito tempo.
Nove meses. Os prazos normais para prisão preventiva eram quatro meses, ele esteve detido durante nove meses. Eu não tenho uma relação próxima, portanto não conheço…
Mas teme que lhe pudesse acontecer o mesmo caso continuasse em Angola?
Não há dúvida alguma que existe uma retórica clara de mostrar que a família do presidente dos Santos é a origem do que foi errado no passado. E essa retórica não é do povo, é política.
Então equacionou essa questão quando decidiu não voltar a Angola nos últimos tempos?
Neste momento não tenho necessidade de ir a Angola.
Acha que coloca a sua vida em risco em Angola?
Gosto de pensar que não é um sítio seguro, não.
Também por causa dessa retórica?
Também, sem dúvida.
E quando saiu de Angola pela última vez foi já com a consciência de que iria voltar em data incerta?
Não, essa viagem foi normal. Por acaso até tinha reuniões marcadas, viajo muito, numa semana posso estar em três ou quatro países diferentes. Além de a viagem já estar marcada, era também o período de férias dos meus filhos. Portanto, ia ausentar-me durante algum tempo, julho e agosto é o período em que estamos fora. Depois, em Setembro, com o evoluir da situação em Angola, achei melhor nesta fase mais conturbada politicamente, e em que há motivações políticas da liderança atual…
Disse há pouco que é uma das pessoas que mais impostos paga em Angola.
Pessoa não, empresas. Estamos na lista dos maiores contribuintes.
Quantas empresas tem o universo Isabel dos Santos?
Não lhe sei dizer. São muitas.
Qual é a faturação de todas as suas empresas?
Também não lhe sei dizer. Por uma questão muito simples: nós não somos um grupo empresarial único, portanto os investimentos são separados. Mas posso dar-lhe exemplos de grandes projetos que temos em Angola.
Mas quanto é que pagou em impostos no ano passado?
Nós não temos impostos individuais em Angola. Mas grande parte das nossas empresas está na lista dos maiores contribuintes.
Lembra-se da soma total de impostos pagos pelo seu universo?
Os números são muito grandes, mas fazer esse somatório não é um exercício que eu faça porque não é útil. Mas pode-se ver o impacto das nossas empresas. Temos empresas como o Candando, que é líder em supermercados, onde temos dois mil trabalhadores diretos. Trabalhamos com cerca de 300 quintas e fazendas e isso gera ainda mais emprego.
Deixe-me só ir para a parte financeira. Algum banco português alguma vez lhe disse que não lhe emprestava dinheiro por ser filha do ex-Presidente de Angola?
Sabe que eu não sou o único PEP (Pessoa Politicamente Exposta) no mundo. Basta ser esposa do diretor do secretário de Estado da Cultura ou ser administrador de uma empresa pública onde o Estado tenha mais de 35%.
Mas não está a responder.
Estou, estou. O que é que eu quero dizer? Hoje em dia, o regulamento de PEP existe e os bancos são obrigados a cumprir um KYC (Know Your Client) e compliance, que são procedimentos muito longos e detalhados onde devem conhecer o cliente, os negócios do cliente, confirmar que os negócios existem, ter referências. Há todo um processo muito rigoroso na banca, seja em Angola ou em Portugal, para verificar os clientes, sobretudo quando são PEP. E eu passo há anos por estes processos. Trabalho em Portugal desde 2006.
Mas alguém lhe recusou um empréstimo por causa disso?
Por ser PEP, não. Podem ter-me recusado empréstimos por não ter as garantias suficientes…
Mas acha que pagou mais ou menos por ser filha do ex-Presidente de Angola?
Os nossos empréstimos a nível bancário são sempre negociados com as taxas dos bancos comerciais.
MPLA: “Os últimos dois anos têm um balanço desastroso”
Votou em João Lourenço?
Eu votei no MPLA.
Foi a mesma coisa…
Em Angola nós votamos no partido, não votamos nas pessoas. Eu votei no MPLA porque acreditava, naquele momento, que o programa do MPLA seria o melhor para Angola. Infelizmente, hoje a realidade económica de Angola é muito dura e não acredito que com o programa que o MPLA está a fazer neste momento se consiga sair da crise. Eu, pessoalmente, estou preocupada.
Mas arrepende-se do seu voto? Sabendo o que sabe hoje, teria votado na Unita ou no Casa-CE, por exemplo?
Olhe, nós somos do MPLA. Acho que disso não há dúvida. Somos do MPLA há muitos anos, isso não está em causa. Mas, para Angola poder sair da crise que atravessa, é importante que haja um bom projeto — e o nosso governo não foi ainda capaz de apresentar resultados. Os últimos dois anos têm um balanço desastroso.
Nas próximas eleições, se João Lourenço for candidato e se o programa do MPLA se mantiver nas mesmas linhas, pondera votar noutro partido?
Espero que o MPLA consiga rapidamente trocar esta estratégia, deixar de culpar o passado…
E se não trocar? Vai votar na Unita?
Não sei quantos partidos vai haver em 2022. Não sei se vou estar aqui ainda em 2022, não sei se todos nós chegaremos vivos a 2022. Tenho dificuldade em fazer futurologia. Angola pode ser um líder regional, é preciso dar continuidade ao que foi feito e multiplicar isso. Hoje, o MPLA não tem essa visão.
Não está a responder à minha pergunta: votaria noutro partido?
Acho que vai depender muito das propostas que serão apresentadas em 2022. Vou votar na proposta que construa aquilo que eu acredito que Angola pode ser.
Mesmo que seja a da Unita, por exemplo?
Não conheço as propostas.
A Unita tem um novo líder.
Sim, esse líder está há pouco tempo, por isso não conheço o projeto da Unita. Angola é um país onde mais de 70% das pessoas são jovens e qualquer programa tem que refletir as ansiedades e a vontade da juventude. E não tenho visto nenhum partido a debater esses temas.
“Eu não sei se sou a mulher mais rica de Angola”
Há um tema que este Presidente aborda muito, que é o da corrupção. Acredita que ele está a fazer um bom trabalho? Como empresária, como vê este problema?
Hoje há uma caça às bruxas onde foi identificado um pequeno grupo de pessoas. Nós fomos há pouco tempo vítimas de um ataque de hackers nos nossos escritórios e foram roubados emails, etc.
Descobriram a proveniência desse ataque?
Recebemos cartas de algumas pessoas que nos escreveram a dizer que estavam em contacto connosco porque queriam informações nossas e que alegadamente estariam a trabalhar com a autoridades angolanas. Não quero pensar que as autoridades angolanas fossem tão longe até ao ponto de entrar…
Mas acabou de admitir essa possibilidade…
Foi a carta que recebi. Aliás, recebi várias cartas.
Uma carta anónima?
Não, não era anónima. Recebi cerca de uma dúzia de cartas nesse sentido. Como eu digo, isto ainda são alegações, não sei se isto é verdade ou não. Em todo o caso, há um clima difícil, em que há uma vontade de se perseguir duas, três, quatro pessoas. E, enfim, todo o caminho é bom para que isso aconteça.
Angola é um dos países mais corruptos do mundo, está na posição 165 em 180 no ranking da transparência internacional. É a mulher mais rica do país, e também do continente…
… não sei se sou a mulher mais rica do país…
Há quem diga…
… escrito pelo Rafael Marques, com a Kerry Dolan [jornalista da Forbes]. (Risos) É só uma pequena achega, mas é verdade, porque ele contribuiu para o artigo.
Ainda assim, tem algum dinheiro, detém algumas das empresas mais importantes, como a Zap, Unitel, tem participações indiretas noutras, como a nova Cimangola, Banco do Fomento de Angola, BIC Angola, e já teve ligações a outras, nomeadamente no negócio dos diamantes. Nunca teve de se confrontar com este problema de corrupção?
Trabalho no setor privado. As empresas que crio trabalham com o mercado…
Mas lida às vezes com o setor público, como víamos há pouco com o investimento em Portugal na Efacec. Portanto, trabalhará, de perto, com empresas públicas?
Muito pouco, muito pouco. As minhas empresas…
… foi chamada pelo setor público quando foi para a Sonangol, por exemplo… E este ranking não diz respeito apenas ao sector público…
Vou falar sobre os negócios que conheço e em que trabalho. Trabalho no sector de mercado. A maior parte dos meus projetos — aliás, citou-os todos — todos eles são projetos de consumo, todos eles têm concorrentes, todos eles têm clientes, todos eles são venda ao público. Acabou de ler a lista, ainda bem que a leu, porque assim não temos dúvidas. Agora, a corrupção há em Angola, há em África, há na Ásia, há nos Estados Unidos, há no mundo, é um problema que tem de ser combatido sim. Acho que sim, que é muito importante.
Mas nunca se cruzou com ele, nunca teve aquela situação de empresária que, de repente, percebe que teve à sua frente um exemplo daquilo que estes rankings revelam?
É importante que Angola e os países que estão na parte debaixo desta lista façam um grande trabalho para melhorarem efetivamente aquele quadro regulatório, porque ainda há regulamentos que ainda podem ser melhorados, que estão atrasados, que fazem falta para o setor empresarial. Acho que há muito trabalho a fazer, que se pode melhorar muito e, sobretudo, acredito que a corrupção deve ser combatida, sim. E que é preciso criar trabalho, emprego, riqueza, oportunidade, para as pessoas poderem trabalhar e construir as suas vidas.
A herança do BPN no BIC e o ataque à Impresa e a Ana Gomes, que “tem um espaço na SIC”
Vamos olhar agora para Portugal onde tem negócios na banca. E voltar também a uma parte daquelas suspeitas levantadas por Ana Gomes sobre o branqueamento de capitais. No início deste mês uma reportagem da SIC revelou uma inspeção que foi feita pelo Banco de Portugal ao BIC que concluiu que o banco tinha deficiências no compliance, uma cultura fraca de prevenção de branqueamento de capitais. É uma das principais acionistas do banco, tem 42,5%, sabia que havia estes problemas?
O que achei extraordinário é que a SIC fez um programa sem sequer contactar a outra parte…
… a reportagem tem uma resposta do BIC…
… não, não…
… em que o BIC garante que as recomendações do Banco de Portugal foram todas acatadas, em que reconhece que havia algumas fragilidades no sistema anti-branqueamento…
… vamos concordar que não teve exatamente o mesmo peso. Quando se quer fazer uma reportagem que é séria e que visa informar o público, o sensacionalismo não ajuda.
Mas sabia ou não sabia destas fragilidades?
O relatório é conhecido, as questões que estavam no relatório foram trabalhadas, superadas, as equipas tanto do BIC como do Banco de Portugal tiveram várias reuniões…
… a própria inspeção do Banco de Portugal, quando faz a análise, já pede esclarecimentos ao BIC sobre o que está a analisar…
Claro, sim, sim, pede. Mas depois disso, quando são identificadas fragilidades, há investimentos que são feitos, processos que são montados. A verdade é que o EuroBic é uma aquisição que foi feita no BPN e nós temos que perceber que, quando o EuroBic era um banco pequenino, não tinha o património e as dificuldades e os problemas que tinha o BPN. Quando o EuroBic comprou o BPN, um dos trabalhos que teve de fazer foi, efetivamente, repor o BPN. O EuroBiC, quando compra o BPN, tem que fazer investimentos nos sistemas, nos processos, nas pessoas. São coisas que foram feitas, que foram bastante melhoradas.
Está a dizer que foram vícios que vieram do BPN, que estas fragilidades no compliance decorrem de terem comprado o BPN?
Estou a tentar explicar que quando se compra um banco, que é um banco que tinha graves problemas, obviamente que esses problemas não desaparecem num dia. O que as equipas começam a fazer é um grande trabalho para ir melhorando, corrigindo e implementando o que tem de ser implementado. Houve um grande investimento que foi feito a nível informático. Mas é preciso perceber que eu não faço parte da gestão do EuroBic. Talvez muitas das perguntas que aqui tem, e que acho que são perguntas muito importantes, são para a gestão do EuroBic, porque eu não sou administradora executiva do EuroBic. Sou acionista e, como tal, as informações que tenho do banco são as que são prestadas aos acionistas.
Está a dizer que não está ligada à gestão direta do banco, mas aquele relatório do Banco de Portugal, aquela inspeção, também identifica um problema para o supervisor que está diretamente relacionado consigo. É dito que foram identificadas relações com potencial risco com alguns clientes, que o BIC não teve o cuidado necessário a que esteve obrigado, nomeadamente em relação a pessoas politicamente expostas, designadamente a sr.ª engenheira, o seu marido e até a sua mãe.
Essa parte da SIC, essa informação que a SIC dá, não corresponde com a verdade.
Nega que esteja no relatório?
Não corresponde à verdade. Aliás, o relatório do Banco de Portugal olhou para vários clientes, felizmente não olhou apenas para duas ou três pessoas. Nós quando comprámos o BPN, o BPN era um banco que estava muito fragilizado, que tinha os sistemas muito débeis. Houve um grande investimento, em novos sistemas, tínhamos computadores que tinham o Windows 98. Eram coisas antiquíssimas. As melhores pessoas que trabalhavam no BPN, com os problemas que o BPN teve, tinham-se ido embora. Era um banco que, se você fosse um bom banqueiro, um bom quadro, não ia para o BPN que estava falido, ia trabalhar para um Barclays, um Santander… Quando nós chegámos, encontrámos, em termos de recursos humanos, poucos quadros. Os melhores haviam partido. Encontrámos um banco débil. Mas fomos investindo e a situação melhor muito. O próprio Banco de Portugal reconheceu isso em relatórios subsequentes e acho que o EuroBic tem vindo a fazer um trabalho extraordinário, tem melhorado muito todos os seus sistemas e, a nível de compliance, tem exatamente o mesmo que têm a Caixa, o BPI ou o Santander.
"Não há dúvidas de que há aqui uma intenção clara de denegrir a minha imagem. Não vejo nenhum outro investidor estrangeiro a ser tratado da mesma forma em Portugal. O preconceito não é bom."
Disse que, como pessoa politicamente exposta, era super escrutinada na política de empréstimos.
E continuo a ser escrutinada.
O que Banco de Portugal parece estar aqui a dizer é que isso não acontecia no seu próprio banco em relação a si própria…
Não, no relatório isso não consta.
O Banco de Portugal aponta como problema a falta de uma fronteira clara entre o banco BIC Angola e o BIC de Portugal…
… mas não comigo. Não há nada no relatório que me mencione a mim. A informação não está correta. Mas a SIC tem sido um meio de comunicação muito, muito manipulado. Há uma ligação muito forte entre a SIC e a Ana Gomes, que aliás acho que tem um espaço na SIC. O próprio grupo, que também tem o jornal Expresso, há muitos anos, muitos anos mesmo, tem escrito e dito “n” falsidades sobre a minha pessoa. Dezenas. Há uma coluna específica que o jornal Expresso tem em que eles devem ter alguma avença, porque, de mês a mês, tem de ter um artigo com coisas falsas sobre mim. Não há dúvidas de que há aqui uma intenção clara de denegrir a minha imagem. Não vejo nenhum outro investidor estrangeiro a ser tratado da mesma forma em Portugal. O preconceito não é bom. Quando há investidores chineses que vêm investir em Portugal e que compram bancos na China, e que inclusive têm problemas com as autoridades, não vejo reportagens da SIC sobre isso. Gostava de perceber se há um preconceito sobre os investimentos virem de Angola.
O Banco de Portugal faz uma série de determinações e recomendações. Há, aliás, processos de contra-ordenações em relação a pessoas do BIC e a clientes. Também vê aí preconceitos do Banco de Portugal?
Não. As recomendações que o Banco de Portugal faz são ao banco para melhorar alguns procedimentos, recomendações essas que foram tomadas pelo banco e que foram implementadas, como as equipas de gestão já comunicaram. Mas o relatório do Banco de Portugal não menciona os nomes mencionados na SIC. Há aqui uma diferença quando tem o jornalista que, de propósito, tenta manchar o nome de uma pessoa, porque, ao colocar o meu nome neste tipo de reportagem, só tem uma intenção única, que é a de destruir a minha reputação, fazer com que haja dúvidas…
… aquele relatório existe em relação a um banco que é seu.
Não é só meu. É também de várias outras pessoas. E há uma equipa de gestão. Que tem feito um grande trabalho, o banco tem recuperado bastante, tem melhorado, tem crescido, apoiou muito as empresas portuguesas durante a crise em 2011, sobretudo as de construção civil. Reportagens destas como a da SIC, antes de irem para o ar, devem pensar também no impacto que têm nos trabalhadores do banco e nos seus familiares, que são portugueses. Agora, fazer estas acusações de uma maneira tão ligeira e tão intencionalmente grave só para danificar a imagem de uma ou duas pessoas por motivos políticos… Porque a SIC e o Expresso têm trabalhado com a Ana Gomes, há anos, na destruição da minha imagem.
A tarefa do Banco de Portugal com esta inspeção é defender os depositantes e os clientes do banco e resulta de uma análise regular que o supervisor faz a todas as entidades bancárias.
O problema é quando o relatório não é lido como está escrito. Do que se está a falar é da reportagem da SIC, não do relatório, sim o que a SIC cita sobre o relatório. A gestão do EuroBic já várias vezes respondeu a estas questões todas e não sou a melhor pessoa para falar das melhorias que o banco tem feito, sei que existem, que a equipa continua a trabalhar, continua a investir, continua a dar os passos necessários, a resolver estas questões, mas eu não as domino profundamente porque eu não faço parte da equipa de gestão. Não tomo decisões dentro do BIC em relação a compliance ou à gestão do próprio banco.
Mas a equipa de gestão de Jaime Pereira surge ligada ao caso Money One que acaba por espoletar tudo isto…
Não sou gestora, nem sou Jaime Pereira. Não conheço o caso Money One o suficiente para lhe poder responder às questões que possa ter sobre ele.
"O Banco de Portugal tem o direito de se queixar sempre que há alguém que não tem o perfil que eles pretendem para ser CEO. É natural e normal recusarem. Não acho isso um problema."
Mas sabia que o caso existia e, mesmo assim, propôs e defendeu que devia ser Jaime Pereira o novo CEO?
Como estou a dizer, não conheço com detalhe o caso Money One, acredito que também não tenha a informação toda…
É um caso que foi julgado, foi condenado o diretor do Sul por corrupção no EuroBic…
Sim. Mas começou quando esse caso?
É descoberto em 2013, 2014. Mas é uma coisa mais antiga.
Então é um problema que vem do BPN.
O Money One era o segundo maior cliente da sala de mercados do BIC, era o principal cliente do BIC quando este problema surgiu… É o próprio Jaime Pereira que escreve aos diretores do BIC para dizer que aquele cliente é muito importante e que é preciso alargar os seus limites…
Está a perguntar a uma pessoa que é acionista questões da gestão.
É a estrutura acionista que escolhe a equipa de gestão. Ele só não foi o sucessor de Mira Amaral porque o Banco de Portugal recusou fazer o registo precisamente por causa destas questões?
Vou voltar a repetir, a pergunta que me está a fazer, para lhe poder responder teria de dominar o assunto. Não domino esse assunto, não lhe consigo responder.
Mas sabe que a idoneidade de Jaime Pereira foi recusada pelo Banco de Portugal, tanto que foi preciso encontrar um outro sucessor?
Exatamente. E foi encontrado. E fez um bom trabalho. O Banco de Portugal tem o direito de se queixar sempre que há alguém que não tem o perfil que eles pretendem para ser CEO. É natural e normal recusarem. Não acho isso um problema. Os acionistas devem-se reunir, olhar para outros candidatos, outras possibilidades e fazer outras propostas. Faço questão de não me envolver na gestão nem do EuroBIC, nem do BFA…
Mas envolveu-se na Galp?
Na gestão não.
De quem é que partiu a iniciativa de entrar na Galp?
Foi de mim e do sr. Amorim. Nós éramos sócios, trabalhávamos juntos, tínhamos uma grande estima um pelo outro, eu admirava-o, acho que ele também me admirava, tivemos os nossos momentos bons, os nossos momentos maus como todos os sócios, porque eu tenho uma personalidade dura e ele também, mas ambos acabámos sempre por ser amigos, por conseguir trabalhar juntos. A iniciativa partir desta relação entre os dois, em que fizemos vários projetos: o EuroBic, a Cimangola e a Amorim Energia.
Quanto é pagou à Sonangol para entrar na Galp?
A Galp é uma participação que é detida pelo meu esposo. Isto é público. Contei-lhe como começou, e de facto foi da amizade entre mim e o sr. Américo Amorim. Depois o meu esposo foi administrador da Amorim Energia durante muito tempo, o nome dele consta lá, isto nunca foi escondido.