Rui Guerra, ex-presidente executivo do Banco Espírito Santo Angola (BESA) entre 2013 e 2014, terá prestado informações falsa aos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES. Em causa está a garantia soberana angolana emitida a 31 de dezembro de 2013 que cobria um valor de 5,7 mil milhões de dólares (cerca de 4,8 mil milhões de euros ao câmbio atual) e que foi pedida por Rui Guerra e por Paulo Kassoma, então chairman do BESA, diretamente a José Eduardo dos Santos em novembro e em dezembro de 2013.
Guerra assegurou no Parlamento que não solicitou nada diretamente ao então Presidente de Angola mas documentação enviada pelo Banco de Portugal para a Comissão Parlamentar de Inquérito ao Novo Banco, cujo relatório foi aprovado esta semana, indica precisamente o contrário.
O capital do BESA era então detido a 55% pelo BES, sendo que a Portmill (entidade controlada pelo general Kopelipa) controlava 24% e o Grupo Geni (entidade do general Leopoldino do Nascimento) detinha 18,99%.
As declarações no Parlamento vs as cartas dirigidas a José Eduardo dos Santos
O caso de Rui Guerra, contudo, é mais explícito. Numa carta dirigida ao presidente angolano (José Eduardo dos Santos) com a data de 4 de dezembro de 2013, Rui Guerra, enquanto chief executive officer do BESA, e Paulo Kassoma, então chairman do banco, solicitaram por escrito a a emissão de “garantias do Estado angolano” e “tomada de algumas medidas de exceção por parte do Banco Nacional de Angola [o supervisor do setor financeiro] que permitam mitigar o risco atual da carteira de crédito do BESA.” Só essa solução, no entendimento de Guerra e Kasoma, poderia resolver “provisoriamente” a situação e impedir “uma grave crise” no Banco, “provocada pela gestão do anterior presidente executivo” [Álvaro Sobrinho].
Rui Guerra e Paulo Kasoma informaram José Eduardo dos Santos de que o BESA iria entrar numa “situação crítica” em 2014, caso não nada fosse feito, tendo invocado insistentemente um “risco sistémico” para o setor financeiro angolano, caso o BESA entrasse em insolvência, “sendo imprevisíveis as consequências daí inerentes” para a economia angolana.
Daí que Rui Guerra e Paulo Kassoma apelassem ao “superior apoio e intervenção” de José Eduardo dos Santos. Os gestores queriam igualmente o “apoio” do então presidente de Angola para que fosse possível ao BESA a “recuperação de parte dos créditos mal concedidos”. Recorde-se que uma parte importante dos mais de 6,8 mil milhões de dólares (cerca de 6 mil milhões de euros) de alegados créditos irregulares concedidos pela administração de Álvaro Sobrinho foram para entidades ligadas a titulares de cargos políticos e públicos de Angola.
No Parlamento, e em resposta o deputado Miguel Tiago (PCP) que o questionou precisamente sobre a razão que o levou a dirigir-se ao então presidente da República de Angola para pedir a emissão da garantia soberana, Rui Guerra foi claro: “Sr. Deputado, primeiro, faria uma pequena afirmação: o CEO Rui Guerra não se dirigiu ao Sr. Presidente da República. Podia ter acontecido, mas não aconteceu.”, lê-se na transcrição do depoimento de Rui Guerra que ocorreu no dia
Na carta por si assinada e dirigida ao então presidente José Eduardo dos Santos os termos são claros: “(…) a situação do BESA apenas poderá ser provisoriamente resolvida mediante a emissão de Garantias do Estado Angolano e a tomada de algumas medidas de exceção por parte do Banco Nacional de Angola, que permitam mitigar o risco da atual carteira de crédito do BESA”.
As explicações de Rui Guerra
Contactado pelo Observador, Rui Guerra desmente que tenha faltado à verdade no Parlamento. “Se a minha intervenção na CPI do BES, em 2015, for ouvida na integra, parece-me claro que nunca neguei a minha participação na solução encontrada para a difícil situação que o BESA viveu no final de 2013. Aliás, recorri várias vezes às expressões “Nós”, “Precisávamos” e mencionei a estreita colaboração que mantive com o Banco Nacional de Angola sobre esse assunto em particular”, começa por explicar.
Sobre a sua resposta ao deputado Miguel Tiago (“o CEO Rui Guerra não se dirigiu ao Sr. Presidente da República. Podia ter acontecido, mas não aconteceu”), Rui Guerra diz que o contexto de tal afirmação prende-se com o momento em que foi “diagnosticada a grave situação do banco sem as devidas clarificações por parte da anterior Administração [liderada por Álvaro Sobrinho], não fui eu que me dirigi ao então Senhor Presidente da República de Angola para pedir a Garantia.” Isto é, Rui Guerra diz que não foi ele quem liderou os primeiros contactos informais com José Eduardo dos Santos para solicitar tal garantia soberana.
Guerra explica ainda que, após a insistência do deputado comunista, respondeu que a garantia foi pedida pelo BESA e que não negou quando Miguel Tiago afirmou que “então também não está errado dizer que o CEO se dirige ao Presidente da República”.
“Mantenho e reitero: não fui eu que obtive a Garantia do Estado Angolano. Depois de a situação ter sido acertada entre o Estado Angolano e os accionistas do BESA participei, como não poderia deixar de ser, em diversos actos formais, muitos dos quais de cariz técnico, relativos à concessão da Garantia, entre os quais as cartas oficiais que refere”, conclui.
Salgado pediu a José Eduardo Santos “apoio do Governo de Angola”
Também Ricardo Salgado, ex-presidente executivo do BES, garantiu em 2015 no Parlamento que “essa garantia [soberana] foi pedida pelos acionistas angolanos” do BESA mas numa carta dirigida ao presidente José Eduardo dos Santos com a data de 4 de novembro de 2013, a que o Observador teve acesso, Salgado pediu o apoio do Governo angolano.
“Com a franqueza e a sinceridade que devo a Vossa Excelência, reconheço que a recuperação do banco [BESA] não pode prescindir do apoio do Governo de Angola, com o enquadramento que vier a ser mais adequado, eventualmente nos moldes que internacionalmente têm sido seguidos em casos semelhantes”, face ao buraco provocado pela concessão de mais de 6,8 mil milhões de dólares (cerca de 6 mil milhões de euros) de alegados créditos irregulares entre 2009 e 2013 durante a administração liderada por Álvaro Sobrinho — matéria que ainda está a ser investigada no Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
E conclui, dizendo que o Paulo Kasoma, chairman do BESA, iria apresentar a “proposta adequada do reforço da capacidade do banco no seu desempenho em prol da economia do país”.
No depoimento prestado a 9 de dezembro de 2014 aos deputados da CPI ao BES, Salgado afirmou que “a garantia” soberana “foi pedida pelos acionistas angolanos, pedido esse, certamente, apoiado pelos acionistas portugueses, pelo Banco Espírito Santo e por mim próprio.”
Ricardo Salgado foi várias vezes a Angola durante o ano de 2013, tendo tido várias reuniões com José Eduardo dos Santos sobre a situação do BESA.
KPMG condenada em Santarém. Recurso do Banco de Portugal pendente
Estes factos relacionados com os documentos que o Observador agora revela são igualmente relevantes para aferir o grau de conhecimento que a auditora KPMG, responsável pela certificaçãos das contas do BES e do BESA, tinha sobre as alegadas práticas irregulares das administrações dos dois bancos.
A KPMG foi condenada pelo Banco de Portugal e pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliário: o supervisor da banca aplicou-lhe uma multa de três milhões de euros e outra coima dois milhões de euros a cinco associados, enquanto que a polícia da bolsa decidiu uma multa de 1 milhão de euros.
Em termos judiciais, e apesar de ter sido o mesmo tribunal de apelo (Tribunal da Concorrência, Supervisão e Regulação) a decidir os dois recursos, os resultados finais foram diametralmente opostos por os juízes que julgaram os recursos serem diferentes.
Enquanto que o recurso da auditora face à decisão do Banco de Portugal foi bem sucedido, tendo o tribunal revogado todas as coimas anteriormente aplicadas por alegada falta de provas. Já o recurso sobre a decisão da CMVM, decidido na semana passada, apenas foi parcialmente provido. Isto é, de acordo com o Jornal de Negócios, o tribunal entendeu que apenas foram provados 11 ilícitos contra-ordenacionais, das 63 originalmente imputadas, reduzindo assim a coima a aplicar de 1 milhão de euros para cerca de 450 mil euros.
O Banco de Portugal, por seu lado, recorreu para a Relação de Lisboa mas não teve sorte. Os desembargadores mantiveram a mesma decisão da primeira instância, tendo o supervisor liderado por Mário Centeno anunciado o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Aqui, contudo, só poderá invocar matérias de direito (e não matéria de facto) para conseguir uma condenção da KPMG e dos seus cinco associados, com destaque para o ex-líder Silkander Sattar que foi condenado pelo BdP a uma multa de 450 mil euros.
A KPMG sempre alegou que desconhecia as alegadas irregularidades e os problemas financeiros do BESA, sendo essa a explicação para a ausência total de qualquer reserva às contas do BESA.
O Banco de Portugal enviou igualmente para a CPI do Novo Banco memorandos de 22 de novembro de 2013 que foram trocados entre Amílcar Morais Pires, então chief financial officer do BES, e Rui Silveira, administrador do BES com o pelouro dos assuntos jurídicos, que atestam o grau de conhecimento e a circulação de informação que existia na administração do BES sobre o buraco do BESA e as atas da assembleia-geral do banco angolano onde os problemas da carteira de crédito estavam explicitadas.
Nesse memorando, que informa que os textos das atas do BESA “é necessariamentoe disponibilizado a qualquer accionista, bem como às entidade de supervisão ou a qualquer entidade ou prestado de serviços que efetue auditorias ao BESA ou ao próprio BES, Silveira informa Morais Pires das negociações do BESA liderado por Rui Guerra e Paulo Kassoma com o Estado angolano e sobre a “a solução” que “poderá passar pela alienação de parte relevante da carteira de crédito, pela obtenção de uma garantia do Estado angolano para a mesma ou por uma solução equivalente. Para esse efeito, o BESA terá dirigido ao Presidente da República de Angola uma carta datada de 5 de novembro de 2013, complementada com outra, datada de 22 de novembro.”
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