Não obstante o cenário de acalmia, muitos continuam a usar os velhos truques, agora mais vigilantes e prudentes na hora da tradicional pergunta: “quer trocar”. Geralmente, com os olhos postos no telefone, não se alheiam ao aproximar de uma viatura e de alguém que tenha perfil de potencial cliente. Não exibem maços de dinheiro, nem andam aos pregões. Na rua 15, a Wall Street à angolana, o pregão silencioso faz eco. Aliás, o Mártires de Kifangondo passou a ser uma alternativa “natural” à banca, apesar do preço especulativo com que se transaciona a moeda. A habitual azáfama deu lugar à acalmia, mas os moradores do bairro dizem que é apenas “um momento de paz”, depois tudo voltar ao que era e com força.
“Quem precisa dólar, aqui encontra”, gaba-se Lada, um jovem da RDC. Digo-lhe que preciso de 40 mil dólares e pergunto se consegue arranjar-me este valor. Não hesita. Diz que não há problemas, é uma questão que se resolve com um telefonema. “Já tenho boa parte da "massa". Vou ligar apenas para completar, mas queres mesmo ou és polícia, então”? Pergunta, desconfiado. Peço-lhe o número e prometo ligar.
A Reportagem do Jornal de Angola passou “furtiva” às várias ruas do bairro para entender como está a ser feito o negócio de dólares e euros e como os “correctores” da “Wall Street 15” inovaram na sua filosofia e o modo de abordagem aos potenciais clientes. O problema agora está em como distinguir polícias à paisana dos verdadeiros “necessitados” de dólares ou euros. Por isso, arriscam-se menos e fecham-se mais.
Para quem tiver dólares para vender, recebe 39 mil kwanzas por cada nota de 100 dólares e 45 mil kwanzas por cada nota de 100 euros. Se tiver de comprar, aí a coisa muda. Os “correctores da rua 15” vendem o dólar por 41 mil kwanzas e o euro a 46,5 mil kwanzas. Se quiser comprar grandes quantidades podem descontar um pouco mais. “Temos dólares. Se precisares, nós ligamos e pronto, já está”, diz Alex, um homem com olhar desconfiado e inquieto, ainda assim interessado em fechar o negócio que mais uma vez lhe faria ganhar o dia.
“Temos de ter muita calma, porque a polícia está muito atenta. O kota não é polícia”? “Não sou polícia. Apenas quero dólares”, respondo. Mas depois, para matar a curiosidade, pergunto-lhe onde tiram tantos dólares. A resposta é assertiva: “temos as nossas fontes bem posicionadas”, diz e acrescenta: “temos boas fontes. O dólar que conseguimos não vem da compra de 100 dólares neste e 100 naquele. Com isso, não íamos a lado nenhum”.
Fala com um certo à vontade, mas depois apercebe-se que está a falar demais e diz: “se o kota quiser e por uma questão de segurança, há um bom restaurante aqui ao lado onde podemos conversar. Pago-te alguma coisa e fazemos o negócio”.
A cautela é excessiva. Tão excessiva que as ruas do Mártires do Kifangondo, particularmente a “rua 15”, estão quase desertas se comparadas ao “fluxo e refluxos” de clientes e vendedores de divisas nos dias que antecederam a operação. Se antes da intervenção da SIC cada palmo era ocupado por cinco ou seis vendedores informais de divisas (dólares, euro ou libra), agora está tudo muito mais calmo.
“Devem estar a estudar novas formas de actuação, porque trabalho aqui há dois anos e nunca tinha visto isso tão arejado, limpo e calmo como agora”, diz uma assistente de venda de uma loja de roupas e acessórios, que denuncia outras práticas ilícitas, mas corto-lhe o fio à meada, pois é tema para uma outra abordagem.
Noutro extremo da “rua 15”, uma baderna instala arraiais, os gestos e o olhar dizem tudo. Encostados em postes eléctricos ou junto de sinais de verticais de trânsito ou mesmo na parede, reunidos em grupos de quatro e cinco, estudam com minúcia o potencial comprador, venha ele a pé ou de carro.
História do Mártires
Na época colonial, o agora Mártires do Kifangondo era o bairro Salazar, em homenagem ao político fascista português António de Oliveira Salazar. O articulista do Jornal de Angola, João Baptista Purgente, em 2010, a propósito do Dia da Independência, escreve um artigo em que faz uma pequena incursão histórica sobre o bairro. “Com a batalha de Kifangondo e a favor das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), foi possível travar os vários exércitos que se dirigiam a Luanda, com o intuito de impedir o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) proclamar a Independência de Angola”.
João Purgente lembra: “com a proclamação da Independência e o nascimento da República Popular de Angola, o novo Governo criado para dirigir os destinos do país decidiu homenagear os heróis tombados na Batalha de Kifangondo, denominando o antigo Bairro Salazar, perto do aeroporto de Luanda, em Mártires do Kifangondo”.
Nos anos 90, e com o advento da paz, cidadãos de outros países iniciaram visitas a Angola com muita frequência. Com o alcance da paz, e antes mesmo desse desiderato, já cidadãos estrangeiros se tinham estabelecido em Angola. Alguns de forma legal e outros de modo ilegal. Muitos deles, fugidos dos seus países por razões de guerra ou económicas. Assim se pode compreender o número elevado de estrangeiros em Angola, sobretudo do Centro, Este e Oeste de África.
A maior parte escolheu Luanda, a capital do país, para viver, elegendo o Mártires do Kifangondo para residirem e fazerem pequenos negócios, mas também outros negócios ilícitos. Refira-se que a proximidade do aeroporto e a existência da mesquita são factores que concorrem para a sua fixação no bairro. (JA)