Sobreviventes do 27 de Maio querem que Angola deixe de tentar "esquecer o passado"

Post by: 25 May, 2021

Sobreviventes do 27 de Maio apelaram hoje ao Presidente angolano para inverter o caminho “sem sentido” do processo de reconciliação em torno do alegado golpe, ocorrido há 44 anos, que consideram “uma encenação" para "fazer esquecer o passado".

Numa carta, com a data de hoje, dirigida a João Lourenço, a que a agência Lusa teve acesso, sobreviventes do 27 de Maio, data em que ocorreu uma alegada tentativa de golpe de Estado no país, referem que, ainda que tenha sido apresentado o propósito de reconciliação, "Angola tem seguido um caminho errado, com a manifesta intenção de fazer esquecer o passado”.

Os subscritores da carta consideram ainda que o caminho que está a ser seguido é errado porque o Governo quer “dar por encerrado aquele que foi um dos períodos mais tenebrosos da sua História: o 27 de Maio de 1977, que vitimou milhares de angolanos”.

Recordam que em julho do ano passado, a Plataforma 27 de Maio apresentou à Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) um conjunto de medidas essenciais para uma verdadeira reconciliação, nomeadamente que se procure a verdade histórica, com uma investigação isenta e célere.

A Plataforma 27 de Maio pediu também à CIVICOP que fosse definido como objetivo a identificação dos responsáveis pelos crimes cometidos, única forma de se saber a quem se perdoa, precedido de um pedido de perdão, que os agentes da repressão, que praticaram crimes deixem de ser considerados “vítimas” e que se defina como objetivo central da Comissão de Averiguação e Certificação dos óbitos, a localização dos restos mortais das vítimas, a sua certificação com o teste de ADN, a emissão das certidões de óbito e a devolução às famílias.

“Referiu também que se tornava necessário um pedido de perdão de V. Exa, enquanto mais alto magistrado da nação e Presidente do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola (partido no poder desde 1975)]”, acrescentam na carta, realçando que “o Papa Francisco fê-lo em relação aos massacres do Ruanda, unicamente pelo facto de a igreja católica ter demonstrado passividade”.

Para os sobreviventes, “no caso de Angola, mais se justifica, pois, houve autoria dos responsáveis políticos, com responsabilidades diretas de Agostinho Neto [primeiro Presidente de Angola, entre 1975 e 1979], que deu luz verde aos massacres, com a incendiária frase “Não vamos perder tempo com julgamentos”.

“Ao invés de dar seguimento a tais medidas por nós reclamadas, a CIVICOP está a promover uma encenação teatral para o próximo dia 27 de maio, que vai ao caricato da deposição de uma coroa de flores, junto à estátua do primeiro responsável pela chacina de tantos angolanos, homenageando-o certamente por ter ordenado a barbárie”, escrevem os sobreviventes.

Outra crítica no documento é direcionada à Fundação 27 de Maio, “de supostos sobreviventes, escolhidos como único interlocutor”.

“Os sobreviventes apelam a V. Exa. para que, com a sua autoridade, inverta este caminho sem sentido e promova uma verdadeira reconciliação, concretizando os objetivos por nós apontados e dando satisfação aos anseios das famílias dos desaparecidos e da tão sofredora nação angolana”, exortam os subscritores.

De acordo com os sobreviventes, enveredando por este caminho, o Presidente angolano “assumirá um lugar relevante na história política do país, adquirindo a estatura de um verdadeiro homem de Estado, que rompeu com a barbárie”.

O Governo angolano vai realizar, pela primeira vez, em 44 anos, uma cerimónia para assinalar o 27 de Maio, numa cerimónia que deverá contar com a presença de sobreviventes e órfãos.

O programa governamental encabeçado pela CIVICOP prevê para este dia, dois momentos, o primeiro no cemitério de Santa Ana, e o segundo na Praça da Independência, onde se encontra a estátua de Agostinho Neto, com a deposição de uma coroa de flores em ambos os espaços, discursos e a entrega de dois certificados de óbito a duas órfãs.

No domingo, depois de a Plataforma ter anunciado, em março, a suspensão da sua participação na CIVICOP, declarou a sua desvinculação da comissão, em carta enviada ao seu coordenador, Francisco Queiroz, igualmente ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola.

Em declarações à Lusa, na semana passada, o presidente da Fundação 27 de Maio, Silva Mateus, considerou a homenagem a ser prestada às vítimas “um sinal de reconciliação entre as partes”.

Em 27 de maio de 1977, uma alegada tentativa de golpe de Estado, numa operação aparentemente liderada por Nito Alves – então ex-ministro do Interior desde a independência (11 de novembro de 1975) até outubro de 1976 –, foi violentamente reprimida pelo regime de Agostinho Neto.

Seis dias antes, em 21 de maio, o MPLA expulsara Nito Alves do partido, o que levou o antigo ministro e vários apoiantes a invadirem a prisão de Luanda para libertar outros simpatizantes, assumindo paralelamente, o controlo da estação da rádio nacional, ficando conhecido como “fracionistas”.

As tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, acabaram por estabelecer a ordem e prenderem os revoltosos, seguindo-se, depois o que ficou conhecido como “purga”, com a eliminação das fações, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves, tal como afirma a Amnistia Internacional em vários relatórios sobre o assunto.

Em abril de 2019, o Presidente angolano ordenou a criação de uma comissão (a CIVICOP), para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de novembro de 1975 e 04 de abril de 2002 (fim da guerra civil).

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