Já aqui o escrevi a propósito das últimas eleições angolanas e por ocasião da tomada de posse de João Lourenço como Presidente da República, sucedendo a José Eduardo dos Santos: surpreendendo muito boa gente em Angola, em Portugal e no resto do mundo, o processo de transição de poder em Luanda está a ser quase ou praticamente exemplar. Mas tem riscos.
Em Portugal como em Angola, os preconceitos históricos e ideológicos ou simplesmente emocionais têm coartado análises racionais, objetivas e distanciadas do processo de transição de um poder durante décadas centrado numa personalidade indiscutivelmente carismática, que soube conquistar a paz para um país que viveu mais de meio século em guerra (colonial e civil) e transformá-lo num referencial de estabilidade para toda a região da África austral.
Angola viveu séculos sob o jugo do império português e logrou, como nenhum outro país de língua portuguesa, estabelecer laços de interligação e cooperação com Portugal de uma forma única, confundindo mesmo muitos foros do pequeno mundo, agarrados a traumas do passado, que olharam com desconfiança para as relações entre portugueses e angolanos ou delas se aproveitaram abusivamente, contribuindo para um entorpecimento ameaçador dos laços que unem os dois povos e os dois Estados.
Na verdade, não faltam os ‘velhos do Restelo’ e os oráculos da desgraça, como não falta uma Justiça com os pratos da balança desequilibrados, em que manobram proeminentes figuras das elites de ambos os países, com total desrespeito por instituições, constituições e, sobretudo, pelo Estado de direito e pelas leis vigentes - em Portugal e em Angola -, sob um manto de corrupção que não tem fronteiras e que não vale a pena fingir que não existe ou que é um problema só de outros.
Faça-se justiça, mas faça-se sem reconhecer impunidade a quem, na sombra, sempre manobrou nos meandros da política e da própria Justiça e é mestre na arte de a ‘vendar’ apenas e só em defesa dos altos interesses em que se move - escondendo-se os verdadeiros culpados atrás de nomes mais sonantes ou mediáticos ou, simplesmente, arranjando bodes expiatórios em quem se deixou deslumbrar.
Sobretudo quando a consequência de tal instrumentalização da Justiça se traduz no prejuízo maior para dois povos e dois Estados soberanos.
Arvorar-se um Estado a sobrepor as suas leis e regras às de outro Estado é como o poder político e a opinião pública e publicada de um povo pretenderem substituir-se às autoridades políticas e à vontade de um outro povo, ainda que irmão.
Um erro crasso de quem se julga polícia do mundo de língua portuguesa, com tiques de colonizador que já deixou de ser há muito ou de quem teme passar de colonizador a colonizado pela manifesta incapacidade de manter independência económica e financeira.
Daí que seja primordial olhar para o que está a passar-se em Angola e pensar nas relações entre Angola e Portugal.
Sobretudo porque, após as eleições angolanas que consagraram João Lourenço como sucessor de José Eduardo dos Santos, não faltaram os aziagos propagandistas, mais até em Portugal do que em Angola, de que tudo não passava de uma manobra do MPLA e do seu líder para se eternizar no poder, mantendo-se à frente do partido que se confunde com o Estado e, por via dos filhos, conservando o poder na Sonangol e nos principais centros de decisão do país.
Ora, provado está que José Eduardo dos Santos abdicou do poder e entregou-o a quem o povo elegeu.
E tudo está a mudar em Angola.
Filha mais velha de José Eduardo dos Santos, Isabel dos Santos é altamente qualificada, a maior empresária de Angola e tem estruturas de elevado profissionalismo nas suas empresas.
Nomeada ainda pelo pai, Isabel dos Santos estava a implementar um processo de restruturação na Sonangol que a retirou praticamente da falência (em que quase caiu com a queda do preço do petróleo nos mercados mundiais e, sobretudo, pelos custos de produção demasiado elevados).
Tempos houve, aliás, em que Isabel dos Santos foi persona non grata em Portugal. Como tempos se seguiram em que Isabel dos Santos passou a ter tapete vermelho estendido e cartão de livre trânsito para entrar no capital de qualquer empresa ou negócio em Portugal.
Daí que o afastamento de Isabel dos Santos da administração da Sonangol, bem como de outros filhos de José Eduardo dos Santos dos lugares de destaque que ocupavam no setor empresarial do Estado, tem, obviamente e muito mais do que a avaliação do trabalho que estava a desenvolver na ‘galinha dos ovos de ouro’ dos angolanos, uma leitura política.
E essa leitura política é, desde logo, a afirmação interna e externa do novo Presidente, João Lourenço.
A transição, afinal, faz-se. Mas tem riscos.
João Lourenço, e bem, tem reiterado publicamente a necessidade de inclusão e de Angola poder contar com todos os seus melhores quadros para recuperar os índices de crescimento económico que já teve.
Isabel dos Santos é um dos melhores quadros de Angola. A sua saída da Sonangol pode ter sido necessária para a afirmação do novo rumo do país. Mas há que contar com ela para o futuro.
Da mesma forma, Portugal não pode alhear-se do que está a passar-se em Angola. Até porque, numa medida que não tem somenos importância, o novo Presidente anunciou legislação e regulamentação para facilitar a política de vistos de trabalho e de residência para expatriados qualificados.
Portugal deve apoiar o esforço do povo angolano e suas autoridades, a começar pela coragem de João Lourenço e pelo exemplo de maturidade democrática de José Eduardo dos Santos e seus filhos - patente nas imagens da despedida de Isabel dos Santos e da sua equipa da Sonangol, sorridentes, ainda que naturalmente contrariados porque convictos do acerto da estratégia que a empresa estava a seguir.
A paz é um valor insubstituível para Angola e seu sacrificado povo. O processo em curso tem, evidentemente, riscos elevados.
Portugal tem obrigação histórica e todas as vantagens futuras em ajudar a tirar obstáculos do caminho. E, já agora, em ajudar a afastar os fantasmas e os diabos que oportunisticamente ensombram e empobrecem as relações entre os dois povos.
Sol