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A história de um mistério chamado Sindika Dokolo

Post by: 30 Dezembro, 2020

Não era habitual Sindika Dokolo falar sobre José Eduardo dos Santos. Sabe-se que o antigo Presidente angolano aprecia a discrição e o recato e, talvez por isso, o marido de Isabel dos Santos falava pouco do sogro. 

Quando abriu uma exceção, revelou mais do que admiração: “Conheci a minha mulher na altura em que o meu pai morreu. Essa perda foi uma ferida muito profunda para mim. Na sequência disso, o meu sogro tornou-se o meu pai espiritual. O meu pai de substituição.

A entrada de Dokolo no clã Dos Santos marcou o seu percurso para sempre — até esta quinta-feira, quando morreu, aos 48 anos, num acidente no Dubai. Sindika Dokolo fazia mergulho quando sofreu uma embolia.

Não fosse a ligação com a família do antigo Presidente angolano e Sindika Dokolo muito provavelmente teria evitado sempre os holofotes. Conhecido colecionador de arte, não há especialista em arte africana que não elogie a sua coleção e o trabalho que fez com ela — mas a verdade é que essa fama estava confinada ao nicho do mercado da arte. Era figura ativa na sociedade civil do seu país de origem, a República Democrática do Congo (antigo Zaire), mas apenas desde meados de 2017, quando fundou um movimento contra o Presidente Joseph Kabila. Tinha fortuna de família, herdada de Kinshasa, porém pouco se sabe sobre as suas origens. Era “inteligente”, “educado”, “simpático”, dizem todas as fontes ouvidas pelo Observador que já se cruzaram com Sindika Dokolo. Mas era também “um mistério”.

Para lá da arte, era um homem de negócios extremamente bem sucedido, tanto em Angola como em Portugal, com investimentos nos diamantes, na indústria do cimento e até numa produtora de cerveja. Mas eram precisamente esses negócios que estavam agora pressionados, por suspeitas de que só terão sido possíveis graças à relação com a mulher e o seu “pai de substituição”. Primeiro surgiu o arresto de bens em Luanda, ordenado pela justiça, sob o olhar atento de João Lourenço. De seguida, a publicação dos Luanda Leaks, que revelaram que Sindika tinha um papel bastante maior nos negócios de Isabel dos Santos do que a imprensa especulava. “Sou como uma ovelha no corredor do matadouro”, respondeu o congolês. “Isto é uma pura caça às bruxas política”.

Ao longo da sua vida, Sindika Dokolo nunca teve hesitações em falar alto sobre o que pensava, contrariando a postura mais discreta da mulher, Isabel dos Santos, e do pai desta. O congolês sempre criticou, por exemplo, o que considerava ser o racismo do Ocidente contra as elites africanas e sempre exigiu a restituição do património artístico africano aos países de origem, recorrendo por vezes ao sarcasmo mais mordaz, como o que revelou numa entrevista ao Le Monde, em 2017“Prefiro que as riquezas de África sejam devolvidas a um negro corrupto do que fiquem com um branco neo-colonialista”. Mais de três anos depois, optava pelo silêncio.

Ele era o genro. E aparecia também como um benemérito das artes, um ativista, um empresário e o companheiro de Isabel. Este era o perfil conhecido de Sindika Dokolo, mas havia mais sob a superfície. Ele era a figura sempre presente, sem laços de sangue mas íntimo do círculo mais próximo de José Eduardo dos Santos. Era o “joker da família”, como dizia Eugénio Costa de Almeida, investigador luso-angolano que tem acompanhado a política angolana e a congolesa em profundidade. Mas de onde vinha esta “carta fora do baralho” chamada Sindika Dokolo?

Sindika Dokolo nasceu a 16 de março de 1972 na clínica da Cruz Vermelha dinamarquesa de Léopoldville (atual Kinshasa), capital do antigo Congo belga, à altura Zaire. A sua mãe, a dinamarquesa Hanne Taabbel Kruse, chegou ao país como voluntária da Cruz Vermelha da Dinamarca, mas acabaria por ser despedida. O motivo? Ter começado a namorar com um homem negro e divorciado, o empresário Augustin Dokolo, que já tinha dois filhos de um casamento anterior.

▲ Sindika Dokolo (à esquerda), com o pai Augustin e o irmão Luzolo DR SITE FAMÍLIA DOKOLO

Quem contou a história foi o próprio Sindika Dokolo, numa rara entrevista dada ao cineasta Jean-Pierre Bekolo Obama, que está disponível no YouTube, com data de publicação de 2010. É também ali que Sindika conta que o seu nome significa “O Enviado” em kikongo, uma das línguas dos Bantu. “Quando eu era criança, os meus amigos e os meus primos mais velhos interpretavam ‘O Enviado’ como aquele que eles ‘enviavam’ para ir buscar uma Coca-Cola ou algo do género. Até que o meu pai apareceu e disse ‘Não, não. É ‘O Enviado’ no sentido de ‘Emanuel, o Enviado de Deus’.”

Sindika era Sindika porque Emanuel era proibido. O Zaire, em 1972, estava em pleno período da authenticité promovida pelo general Mobutu: o nacionalismo africano, combinado com o culto do líder e o apoio americano em plena Guerra Fria, tornara-se o motor de um regime ditatorial que duraria até finais da década de 1990. Os nomes cristãos foram, por isso, banidos. “Foi um fenómeno cultural que tivemos e que foi muito forte, um pouco na senda da revolução cultural maoísta, na China. Foi uma decisão política tomada na época como forma de igualitarismo. Toda a gente ia à mesma escola e toda a gente usava o mesmo uniforme. Os homens não podiam usar gravata, as mulheres não podiam usar calças”, resumia o próprio Sindika na entrevista a Bekolo Obama, sobre o período em que Mobutu se aproximou da China maoísta por oposição aos soviéticos.

Joseph Désireé Mobutu chamou Zaire ao Congo e auto-nomeou-se Mobutu Sese Seko Koko Ngbendu wa za Banga, que significa “O guerreiro todo-poderoso que, devido à sua resistência e vontade inflexível de ganhar, irá de conquista em conquista deixando fogo à sua passagem”. O chapéu em pele de leopardo tornou-se a sua imagem de marca, o pormenor de ostentação de um líder africano cuja mansão milionária que construiu tinha até pista de aterragem para um Concorde. A política era feita com mão de ferro, através de um sistema de partido único, com promoção do igualitarismo a qualquer custo — e muito dinheiro desviado. Pelo meio, Mobutu mandava enforcar aqueles que o desafiavam e promovia eleições onde os zairianos escolhiam entre um boletim verde “pela unidade e esperança” (pró-Mobutu) ou vermelho “pela mudança e o caos” (anti-Mobutu).

Foi neste Zaire que Sindika Dokolo cresceu, num ambiente que o terá marcado para toda a vida. “Sei o que é viver num sistema de partido único, onde não se tem direito a expressar opiniões diferentes”, afirmou ao jornal Le Point em 2017. Mas o Mobutismo não lhe trouxe apenas más influências: “Se olharmos de uma perspetiva histórica, quando a era Mobutu acabou e entrámos no século XXI isto pode ter adquirido uma dimensão ridícula. Mas marcou toda uma geração. A minha identidade vem fundamentalmente toda dessa revolução cultural”, assumiu na entrevista a Bekolo Obama. A lógica anti-colonialista promovida por Mobutu, traduzida na frase várias vezes repetida “Nós não somos como os ocidentais”, entranhou-se em Sindika. Anos depois, Sindika e Isabel dos Santos dariam a todos os seus filhos nomes de origem africana.

Como acontece com qualquer déspota, em torno de Mobutu também cresceu uma corte. “Com José Eduardo dos Santos, muita gente navegou e orbitou à volta dele. Também muitos viveram e sobreviveram à volta de Mobutu Sese Seko”, aponta Eugénio de Almeida. Um desses homens terá sido Augustin Dokolo, pois só assim parece explicar-se que tenha conseguido ter um império de negócios tão bem sucedido em plena ditadura mobutista. Ainda antes da independência do Congo belga, já Augustin detinha uma empresa de táxis, o seu primeiro grande negócio conhecido. Após a independência, surgiram outros negócios, como uma discoteca — a primeira a ser detida por um negro no Congo, segundo revelava o próprio Sindika no site da família.

Manu Dibango, um dos músicos africanos mais conhecidos da sua geração, conta na sua auto-biografia como o seu caminho se cruzou com o de Dokolo pai na década de 1960, descrevendo-o como um homem de negócios já muito rico: “Tínhamos acabado de conhecer Dokolo, um banqueiro com fortuna que vivia num luxuosa villa, em frente à câmara municipal. Ele tinha-me ouvido tocar na [discoteca] Afro-Negro e sugeriu-me um negócio. Foi então que criámos o Tam-Tam, o nosso primeiro clube”. Tecnicamente, em 1963 Dokolo ainda não era um “banqueiro com fortuna”, já que o seu grande negócio, o Banco de Kinshasa, só viria a ser fundado em 1971. Mas não parece haver dúvidas de que Augustin Dokolo já tinha dinheiro suficiente para investir no que lhe apetecesse.

Um dos poucos artigos de jornal que sobreviveram desse tempo, no Congo, conta como o Banco de Kinshasa “nasceu num dia de mau tempo, na tarde de 20 de novembro de 1970”. Já aí se atribuía uma ligação do banco a Augustin Dokolo, mas não se descartava “a compreensão e o apoio do governo” para garantir que o Banco de Kinshasa era fundado. À data da inauguração, empregava 50 pessoas; um ano depois, os funcionários já eram mais de 400.

Marius Muhunga, jornalista congolês, ilustra ao Observador o quanto Augustin Dokolo era bem-sucedido no ecossistema em torno de Mobutu: “Quando se diz a alguém no Congo que se é um Dokolo, isso significa que se é bastante rico. Ora, numa altura em que Mobutu era um ditador e começava a concentrar em si todo o poder, a maioria das pessoas com posses na altura ou eram da família de Mobutu ou da sua província. E Dokolo era de outra parte do país, do Congo central, portanto isto era muito raro”, aponta. “Este tipo podia não ser um político, mas era um hábil homem de negócios, sem dúvida.”

▲ Mobutu e a sua política de "authenticité" marcaram o à altura Zaire Gamma-Rapho via Getty Images

Erik Kennes, ex-membro da missão da ONU na República Democrática do Congo (RDC), concorda: “Basta ver o livro que ele publicou, o Telema Congo. Na segunda página diz-se que foi oferecida uma edição especial do livro ao Presidente”, conta ao Observador. “Ele nunca conseguiria ter este destaque se não tivesse a bênção de Mobutu. Não existia vida económica independente no Congo daquela altura.”

Com maior ou menor apoio do regime, Sindika Dokolo gostava de destacar o dinamismo do pai como empresário. “O meu pai tinha um fogo criativo. Levantava-se às 4 da manhã para ir a estaleiros de construção, pensava a toda a hora, planeava. A sua carreira, bastante única para a realidade da RDC, não é destacada o suficiente”, dizia à Jeune Afrique numa das suas entrevistas mais célebres. “Sou o seu herdeiro. Inspira-me naquilo que considero ser a minha responsabilidade social, nos meus interesses económicos, nos meus interesses.”

Mas eis que, não se sabe exatamente como nem porquê, Mobutu Sese Seko deixou de proteger Augustin Dokolo. “Há duas versões sobre esta história”, conta Erik Kennes, que viveu oito anos em Kinshasa (2009-2017), muito depois de Mobutu já ter saído do poder. “Segundo uma das versões, Augustin acumulou demasiada dívida, incluindo pequenos empréstimos que o Banco de Kinshasa contraiu com o Banco Central, e isso provocou a queda financeira do banco. A outra versão diz que o governador do Banco Central à altura, Pierre Pay-Pay, criou artificialmente dívida do Banco de Kinshasa para provocar problemas ao banco. Esta é a versão defendida pela família Dokolo.”

▲ Isabel dos Santos e Sindika Dokolo, quando eram mais novos INSTAGRAM ISABEL DOS SANTOS
▲ Desde que comprou a coleção de Hans Bogatzke, Sindika deu nas vistas no mundo da arte africana contemporânea Artur Machado / Global Imagens
▲ Sindika Dokolo na inauguração da sua exposição "You Love Me, You Love Me Not", no Porto, com Rui Moreira (à esquerda) e o à altura vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva (à direita) Artur Machado
▲ Sindika e África: “Por cada negro africano oportunista que roubou dinheiro ilegalmente ou imoralmente, há 999 brancos, na maioria europeus, que fizeram muito pior” Gerardo Santos
▲ José Eduardo dos Santos e a ex-primeira-dama Ana Paula Santos. Na fila de trás, Isabel dos Santos e Sindika Dokolo FACEBOOK ISABEL DOS SANTOS
▲ Sindika Dokolo a receber a medalha de mérito da Câmara do Porto Artur Machado

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