Trata-se de um conúbio inaceitável entre os poderes político e judicial de Angola e de Portugal. Na verdade, os órgãos do Estado foram usados para fins privados da forma mais despudorada que se possa imaginar, visando, fundamentalmente, dar continuidade à pilhagem em Angola e desacreditar os que se têm batido vigorosamente contra o saque no país.
Enquadramento e personagens
Paulo Amaral Blanco é um advogado português, fundador da sociedade de advogados Amaral Blanco, Portela Duarte e associados. Tornou-se famoso, recentemente, ao ser condenado em primeira instância por um tribunal português a quatro anos e quatro meses de prisão, com pena suspensa, no âmbito do Processo Fizz. Trata-se do processo em que Manuel Vicente foi acusado de corromper o procurador português Orlando Figueira.
Ao longo dos anos, Paulo Amaral Blanco tem sido o advogado de vários dirigentes angolanos, como Manuel Vicente e os generais Kopelipa e Dino do Nascimento. Blanco foi também advogado em Portugal daquele a que se convencionou chamar o “trio presidencial” da pilhagem do Estado angolano.
Por sua vez, João Maria de Sousa foi o infame procurador-geral da República (PGR) de Angola entre 2007 e 2017.
De notar, ainda a título de enquadramento, que Paulo Amaral Blanco é um advogado privado, e por isso pode fazer o que entender, desde que dentro da lei. Já João Maria de Sousa é um dirigente de um órgão fundamental da justiça, pelo que só pode fazer o que a Constituição e a lei determinam. Isto quer dizer que as suas acções têm de obedecer ao estrito cumprimento do interesse público do Estado angolano. Entre essas acções não se encontram as defesas privadas em procedimentos criminais de figuras actuais ou passadas do Estado angolano. Tal cabe a advogados, e não ao PGR.
Os e-mails trocados entre Janeiro de 2012 e Agosto de 2014 por estas duas figuras abrangem três matérias: a interferência e possível colusão com magistrados portugueses do Ministério Público, verificando-se que as acções foram mais longe e abrangeram mais pessoas do que o procurador Orlando Figueira; a actuação de João Maria de Sousa enquanto representante privado de dirigentes angolanos, misturando o exercício das funções de PGR com a de articulador de interesses pessoais; e a tentativa de “arrumar” Rafael Marques num caso referente a ilegalidades praticadas por Manuel Vicente.
Vamos agora descrever cada uma das situações tal como resultam da correspondência electrónica trocada entre Paulo Amaral Blanco e João Maria de Sousa.
“Contentor de paracucas”
Um primeiro e-mail enviado por Paulo Amaral Blanco (PAB) a João Maria de Sousa (JMS) tem data de 18 de Janeiro de 2012 e como assunto de referência “Deslocação a Lisboa – Planeamento/Agenda/Objectivos”. Aí, PAB sugere de forma bastante confortável que JMS, numa prevista visita a Lisboa, se encontre com Pinto Monteiro, então PGR de Portugal, e Cândida Almeida, ao tempo directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) do Ministério Público português, a mais importante instância investigatória em Portugal. Escreve PAB: “Julgo que seria bom agendarmos uma reunião com a Dra. Cândida Almeida (eu próprio poderei, se V.Exa. quiser, tratar disso), para que V.Exa possa pessoalmente agradecer-lhe a colaboração com a PGRA e oferecer-lhe um contentor de paracucas.”
Um encontro entre o PGR de Angola e os seus homólogos em Portugal é perfeitamente compreensível. O estranho é a intermediação de tais encontros por um advogado de defesa português. Obviamente que isto levanta suspeitas de reuniões que acontecem à margem das agendas oficiais, movidas por objectivos obscuros.
Mais bizarra ainda é a referência, no mesmo e-mail, ao modo como JMS deveria agradecer a Cândida Almeida pela colaboração com a PGR de Angola. Paulo Amaral Blanco sugere a oferta de um “contentor de paracucas” à magistrada.
Como advogado de defesa dos interesses de dirigentes angolanos, a referência de Paulo Amaral Blanco à colaboração de Cândida Almeida com Angola não se refere certamente à perseguição de criminosos, mas sim à protecção dos esquemas nefários dos clientes angolanos de PAB. A isto acresce a sugestão de oferecer a Cândida Almeida um “contentor de paracucas”, o que tanto pode ser uma brincadeira como uma expressão codificada que sugere algo de menos próprio. A paracuca é um doce angolano feito de ginguba. Naturalmente, não parece muito credível a ideia de que JMS ofereceria à senhora procuradora um contentor de doces…
Não sabemos, portanto, qual foi a colaboração específica de Cândida Almeida a que PAB se refere e qual o presente que recebeu por isso, se é que recebeu alguma coisa. Fica a interrogação, para que seja devidamente esclarecida pela magistrada e pela justiça portuguesa.
Contudo, não se fica por aqui a aparente promiscuidade entre o Ministério Público português e os interesses privados dos dirigentes angolanos sob investigação.
Num e-mail de 23 de Janeiro de 2012, com o assunto “Urgente – Parreira (Vencida a Primeira Etapa)”, PAB conta a JMS sobre o seu encontro com o procurador do DCIAP, Paulo Gonçalves, com quem afirma ter excelentes relações pessoais. Relata PAB: “Como referi telefonicamente, reuni esta manhã, no DCIAP, com o Exmo. Dr. Paulo Gonçalves, Procurador da República, titular do processo (acção de prevenção AP 85/11), com quem aliás tenho excelentes relações pessoais […]. Expliquei-lhe detalhadamente os contornos políticos do caso, o calendário eleitoral e a importância do tema para as relações entre os dois países…”
PAB gaba-se, como se lê, de ter feito sentir ao seu amigo procurador que, nas investigações a angolanos influentes, se encontravam em jogo aspectos mais importantes, como as relações entre Portugal e Angola e os calendários eleitorais, sendo que tais casos assumiam sempre contornos políticos.
Paulo Amaral Blanco, o advogado daquele a que se convencionou chamar o “trio presidencial” da pilhagem do Estado angolano
O advogado português conclui, satisfeito, que o procurador foi permeável aos argumentos: “… tendo ele [procurador] demonstrado sensibilidade para a questão e disponibilidade para conversar abertamente e trabalharmos lealmente.”
Qual advogado do diabo, PAB descreve de seguida como o procurador Paulo Gonçalves lhe revelou o conteúdo da inquirição que este realizou a Rafael Marques de Morais, a 11 de Janeiro do mesmo ano, respeitante a Manuel Vicente e a outros saqueadores presidenciais.
“Ora, tal facto aliás público porque noticiado aqui em diversos órgãos de comunicação social obstaculiza, segundo ele [procurador Paulo Gonçalves], peremptoriamente, o imediato arquivamento do processo no que versa, para já, ao cidadão que sabemos [Manuel Vicente] […]”. Adiante, Paulo Amaral Blanco esmera-se a explicar como, com o apoio do seu amigo magistrado, podem então arquivar as declarações e provas apresentadas por Rafael Marques e livrar Manuel Vicente dos processos judiciais contra si: “Previamente terá(ão) de ser arquivada(s) a(s) queixa(s) aí apresentada(s) e certificado o respectivo arquivamento, para o processo aqui pendente poder ser arquivado sem quaisquer fragilidades técnicas.”
Recapitulando: nesta mensagem, o advogado não só revela a justificação do magistrado português para não arquivar de imediato a referida investigação, devido à pressão da comunicação social, como também o facto de este alegadamente ter acedido a não transformar uma averiguação num processo de inquérito, além da “combinação” realizada dos actos para melhor sustentar um arquivamento em Portugal.
E a interacção com o DCIAP continua. A 25 de Janeiro de 2012, PAB envia outra mensagem electrónica ao PGR de Angola com o assunto: “Confidencial – Reunião DCIAP/Procuradora da República MAS+Sexta-feira”. Aqui, refere uma reunião no DCIAP com a procuradora MAS. Aparentemente, a reunião com a procuradora MAS foi muito produtiva, conta Paulo Amaral Blanco ao procurador-geral angolano, visto ter recebido vários elementos da magistrada. No mesmo e-mail, Blanco informava que continuava os contactos com o procurador Paulo Gonçalves. Consta do texto: “A reunião foi muito produtiva. O proc. 235/11.0 TELSB aguarda uma resposta ao ofício, e expediente […] cuja cópia anexo. (Nota: [a procuradora] facultou-me uma pen drive com a cópia de todo o processo).” Mais adiante informa: “Sexta-feira vou almoçar com o Dr. Paulo Gonçalves, Procurador da República, no DCIAP, titular do processo em que é denunciante o Parreira.”
Há dois factos que causam grande perplexidade nesta correspondência electrónica.
O primeiro facto é a facilidade aparente com que um advogado de defesa representando pessoas politicamente expostas e sob possível investigação no DCIAP se movimenta, marca almoços, sugere a oferta de prendas, invoca interesses políticos, acompanha processos em curso. Há uma intimidade judicial fora do comum, dir-se-ia mesmo que promíscua.
O segundo facto é o acesso aos processos em curso. Não é claro se estavam ou não em segredo de justiça, mas a experiência comum do foro não indica um grau tão elevado de acesso por parte de advogados na fase de inquérito. Tudo indica que estamos perante uma excepção.
Fica então um certo lastro de suspeita, eventualmente infundada, mas que merecia investigação, de que o DCIAP, no tempo da direcção de Cândida Almeida, poderá ter sido demasiado permeável a pressões angolanas. E a troco de quê?
“Mandato verbal”
Um aspecto fundamental que releva desta correspondência, além da aparente permeabilidade da justiça portuguesa ao poder angolano, é o papel do PGR de Angola. João Maria de Sousa não é advogado privado, nem as suas funções oficiais lhe atribuem qualquer papel na defesa de Manuel Vicente ou de outros dignitários angolanos alvo de investigações privadas. E, no entanto, JMS surge como coordenador das suas defesas em Portugal. Isto é demasiado surreal.
Sintomático é o e-mail enviado por JMS a PAB em 6 de Março de 2012, epigrafado como “A Leitura…”.
Nesse e-mail, João Maria de Sousa confessa ter recebido mandato verbal dos generais Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa”, Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino”, Higino Carneiro e do antigo ministro das Finanças e governador do Banco Nacional de Angola, José Pedro Morais, para analisar os processos pendentes contra eles em Portugal. “Também recomendei o [Manuel] Rabelais [ex-ministro da Comunicação Social], com quem o meu amigo [PAB] já manteve contacto. Gostaria que me enviasse um resumo do que há para fazer relativamente a cada um deles, visando o encerramento dos respectivos expedientes processuais”, escreve João Maria de Sousa. Para além de servir como angariador privado de clientes angolanos poderosos para o advogado português, o então PGR assume também o papel de contabilista de Paulo Blanco do Amaral: “E em função de tudo, apresentar-me propostas individualizadas de honorários, para eu discuti-las com os interessados que não deixaram de me referenciar o facto de terem havido anteriores tentativas de entendimento que só falharam devido aos elevados valores a cobrar.”
Nas vestes de cobrador, intermediário, “mixeiro” ou contabilista do advogado português, o general João Maria de Sousa exige um “tratamento diferenciado” para os clientes por si angariados, contrariamente aos outros que caem de “pára-quedas” no escritório do seu ora “patrão”. “Como deve entender, eles [Kopelipa, Dino, Higino, Pedro de Morais e Rabelais] esperam da minha intervenção, uma considerável redução dos valores a pagar.”
O general João Maria de Sousa não disfarça. Assume-se como o coordenador privado das defesas jurídicas destes dirigentes angolanos em Portugal. O advogado do Estado, já que é essa a função do Ministério Público, passa a ser advogado dos maiores saqueadores do Estado. JMS confunde, com naturalidade e destemida arrogância, funções públicas com funções privadas.
Este e-mail, além de consagrar João Maria de Sousa na dúbia posição referida, inclui uma segunda parte, onde é usada uma linguagem algo ambígua. Fica a dúvida se a referência é a honorários a pagar ao advogado, ou se se trata de valores a entregar a determinadas pessoas (magistrados portugueses?) para arquivarem os processos, sendo que os montantes pedidos eram demasiado altos. Não é claro do que se trata, e a resposta de PAB a 12 de Março é suficientemente ambígua para não permitir que se tirem conclusões.
Certo é que o então PGR João Maria de Sousa opera como representante privado mandatado pelos “marimbondos” acima referenciados. Muito simplesmente, não pode fazê-lo. É ilegal.
“Arrumar Rafael Marques”
O último tema dos e-mails é a tentativa de desacreditar Rafael Marques em relação a uma denúncia que este fez acerca de Manuel Vicente.
Manuel Vicente, vice-presidente da República e alvo de investigações judiciais
A história conta-se rapidamente. No início de Agosto de 2013, Rafael Marques apresentou uma queixa-crime contra o vice-presidente da República, Manuel Domingos Vicente, por acumulação de funções privadas, numa postura contrária à legislação em vigor. A queixa-crime referia-se ao exercício, por Manuel Vicente, do cargo de director na China-Sonangol International Holding Limited, uma empresa privada chinesa, ao mesmo tempo que estava no Executivo. Manuel Vicente fora nomeado ministro de Estado em Janeiro de 2012, e eleito vice-presidente em 31 de Agosto de 2012. A 6 de Setembro de 2012, já depois de eleito e antes da sua tomada de posse, Vicente aceitara a renovação do seu cargo de director da empresa China-Sonangol International Holding.
Obviamente que a acção de Rafael Marques fez tremer o “trio presidencial”, colocado mais uma vez a descoberto.
E, nesse sentido, PAB escreve a JMS, a 20 de Agosto de 2013, referência “Urgente/Documentos que provam que Vice-PR Manuel Vicente, não violou a Lei da Probidade e Rafael Marques mentiu”, a congratulá-lo pela contra-ofensiva mediática do governo e a fazer várias sugestões para “arrumar” Rafael Marques e provar que este mentiu. Escreve PAB: “Parece que finalmente temos alguém das nossas cores na frente de batalha mediática. Bom trabalho!”
Contudo, queixa-se de que Manuel Vicente não está a reagir com a indignação necessária e que em Luanda existem intrigas a mais e trabalho a menos. “Porém, os documentos publicados não espelham quaisquer sentimentos do visado, ou seja, qualquer indignação, nem esclarecem cabalmente o tema. E, politicamente, isso é fundamental”, escreve PAB ao seu associado de ocasião, o general-procurador.
De forma mercenária e tomando as dores do MPLA, Paulo Blanco do Amaral continua: “É necessária, na minha perspectiva, uma explicação detalhada, pessoal e política, onde o visado se indigne e esclareça as pessoas, digo os eleitores e os camaradas do próprio MPLA, por forma a arrumar definitivamente a questão e inclusive o próprio Rafael Marques.”
No entanto, o mesmo advogado reconhece que “a renúncia [de Manuel Vicente ao cargo de director da China-Sonangol] não foi registada na Conservatória do Registo Comercial chinesa competente, o que terá, segundo se deduz do texto da queixa divulgado pelo pseudo-jornalista, permitido a obtenção, pelo próprio Rafael Marques ou por algum comparsa, de uma certidão onde o nome do Eng. Manuel Vicente ainda constará como administrador da empresa em questão”.
Apesar de admitir que não havia renúncia oficial de Manuel Vicente ao cargo na empresa chinesa enquanto exercia já as funções de vice-presidente da República, o português instrui o então PGR angolano sobre os passos políticos e judiciais a dar em Angola.
Primeiro, propõe a defesa pessoal e política de Manuel Vicente, com uma resposta à queixa apresentada na PGR, “demonstrando a sucessiva e continuada má-fé do denunciante [Rafael Marques]”.
Segundo, aconselha a que se dê grande publicidade jornalística à resposta de Manuel Vicente, “por forma a esclarecer a opinião pública. Importa realçar, a mentira desse esclarecimento, uma vez que o proponente admite a inexistência de renúncia oficial, na China, do seu cliente à data da queixa”.
Terceiro, de acordo com Paulo Amaral Blanco, a propaganda sobre a imagem “limpa” de Vicente serviria para “desta forma ‘ajudar’ a própria PGR a arquivar a denúncia”.
Até à presente data, a PGR, sob comando arbitrário do general João Maria de Sousa, nunca se dignou a responder à queixa apresentada por Rafael Marques de Morais, nem a fazer uma comunicação sobre qualquer procedimento judicial relativamente à mesma. Eventualmente, diante de factos irrefutáveis, se calhar desta vez o procurador-general preferiu simplesmente engavetar o caso, ignorando a necessidade de resposta.
Existem outros e-mails referentes a Rafael Marques de Morais, mas este é o mais relevante. Constata-se, sem margem para dúvidas, que Rafael Marques representou sempre uma preocupação para o poder corrupto liderado por José Eduardo dos Santos, que sempre procurou, com o apoio e o estímulo dos aliados portugueses, uma forma de o neutralizar e apelidar de mentiroso.
A correspondência electrónica aqui descrita deixa um retrato preocupante da justiça angolana e da permeabilidade da justiça portuguesa, num caso que merece investigação aprofundada desta apropriação privada da soberania estatal, quer em Angola, quer em Portugal. Maka Angola