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Rafael Marques: “O maior opositor do regime é João Lourenço”

Post by: 06 Novembro, 2017

Dois meses depois das eleições, o jornalista e ativista analisa a situação política de Angola. E fala sobre a sua nova investigação: execuções sumárias a suspeitos de delinquência

É o rosto da Angola moderna e contestatária ao regime. Aos 46 anos, defende que ali só é possível fazer jornalismo se se for ativista. Contra todas as pressões e limitações continua a fazer um trabalho com independência. Quando os angolanos se sentem injustiçados e querem fazer denúncias, é a ele que recorrem. Constrói uma ligação com as fontes que mantém depois de os trabalhos serem publicados e amplamente noticiados. Prestes a publicar mais um relatório que expõe violações dos Direitos Humanos em Angola — desta vez sobre execuções sumárias de suspeitos de delinquência —, recusa o medo e diz que se sente tão vulnerável como qualquer outro angolano. É a vida que escolheu, de jornalista sem receio de analisar e criticar quem governa e governou o seu país. Tem “orgulho” no trabalho que desempenhou para a ONG de George Soros. E está na expectativa do que vai fazer João Lourenço, mas deixa um conselho: terá de destituir Isabel dos Santos. É esse o grande teste da sua Presidência.

Como pensa que está a correr a Presidência de João Lourenço?

José Eduardo dos Santos quer destituí-lo. O discurso que fez na tomada de posse não agradou aos apoiantes de José Eduardo.

De que parte não gostaram?

Ele fez dois ataques específicos a Isabel dos Santos, um sobre o monopólio do cimento — há fábricas de cimento maiores do que as de Isabel, mas precisam de combustível para funcionar e ela cortou-lhes o abastecimento para as levar à falência. No discurso, praticamente demitiu o governador do Banco Nacional, que não percebe nada de Finanças. Foi ali posto para facilitar. João Lourenço atacou-os porque não se pode demitir nem governador nem Isabel. É uma má estratégia para a autoridade que tem. Se é para comprar guerras, mais valia demiti-los por decreto. João Lourenço tem esses poderes constitucionais. É preferível do que anunciar e não poder fazê-lo. Se não os demitir nos próximos seis meses ninguém o vai levar a sério.

Então, João Lourenço está a prazo.

Sim, não durará muito.

Não lhe dá o benefício da dúvida?

Ele já provou que tem um ódio especial — e agora indisfarçável — a José Eduardo. O José Eduardo escolhe o João Lourenço porque, a determinada altura, percebe que está isolado dentro do partido e que alguns tipos do MPLA passavam a vida a conspirar contra ele. A prisão de Luaty Beirão e dos outros foi para abafar as conspirações internas. E mostrar que o mesmo poderia acontecer aos conspiradores. Conseguiu estancar o descontentamento interno. Nomeia João Lourenço quando está refém de Kopelipa [general Manuel Vieira Dias, investigado pela Justiça portuguesa por suspeitas de branqueamento de capitais], este sim o Presidente efetivo. Quem mandava, fazia e desfazia. E várias vezes fez saber a José Eduardo que a sua vida dependia dele. Então, José Eduardo teve de fazer uma espécie de acordo, entregar o poder ao MPLA, contra a vontade dos Kopelipas que estavam à sua volta. Ele sabia que o nome de João Lourenço acalmaria as hostes, por ser um inimigo declarado. Mas José Eduardo está a congeminar tirá-lo da vice-presidência do MPLA e deixá-lo dependente de uma forma submissa.

Essa manobra tem alguma hipótese de ser viável?

É possível. Quem continua a controlar o dinheiro é o José Eduardo. Os principais assessores e alguns ministros são todos homens dele. O João Lourenço tem de tomar uma medida radical, que coloque em xeque o poder do José Eduardo. A população apoiaria João Lourenço.

Acha que ele vai tomar essa medida?

O seu maior teste é a demissão de Isabel dos Santos nos próximos meses. Se se concretizar, haverá outro teste: a demissão do outro filho do José Eduardo, Zenu [José Filomeno de Sousa dos Santos, à frente do Fundo soberano]. No discurso optou por não falar de Portugal porque considera que os lóbis portugueses são os que mais legitimam o poder do José Eduardo. E ele considera que tem de se livrar desses lóbis e dos assessores portugueses que estão na Sonangol. Por isso não deu posse aos administradores portugueses na Sonangol.

Como se afasta Isabel dos Santos?

Pode fazê-lo por decreto. A qualquer momento pode demitir o conselho de administração da Sonangol. Este é o teste. Há duas alas, o Nandó, que é o presidente da Assembleia Nacional, disse-lhe que tinha de tomar essas medidas já. Se tomar depois de seis meses é um Presidente acabado. Mas outros foram ter com ele e disseram-lhe: “Tenha calma, deixe o Presidente sair com dignidade e não toque na filha.” Ao que ele respondeu: “Então se não toco na filha onde vou buscar o dinheiro?”

A administração da Endiama [empresa de diamantes do Estado angolano] também foi nomeada pelo ex-Presidente antes de sair.

Ele vai ter de dispensar esses tipos todos. Todo o negócio dos diamantes é controlado pela Isabel.

A atual administração é favorável a Isabel?

Trabalha para a Isabel. São empregados da Isabel. Ela criou uma empresa, em Malta, que tem 50% dela e 50% da Endiama, e essa é que faz a comercialização dos diamantes. Mas na realidade não faz, porque são enviados para a sua joalharia e o Sindika [Dokolo, marido de Isabel dos Santos, congolês] lapida-os em França, onde tem uma fábrica, e vende-os como se fossem seus. O Estado recebe zero. A Endiama nunca apresentou um relatório financeiro. Nunca. E ninguém pede.

O que pode acontecer no MPLA se o João Lourenço afastar Isabel dos Santos?

Ou ganha o João Lourenço ou ganha o José Eduardo. Mas não haverá coexistência pacífica. Ou o José Eduardo morre no espaço de um ano, e o João Lourenço afirma o seu poder. Ou está sujeito, num curto espaço de tempo, a levar um golpe.

Golpe no sentido de manter-se como Presidente mas sem grande poder ou golpe efetivo em que o retiram da presidência?

No momento em que for afastado do MPLA, com muita facilidade afastam-no da presidência.

Seria um golpe constitucional.

Sim. Depois inventam aí uns casos de corrupção. Fazem uma campanha interna e tem de ascender o vice-presidente. O João Lourenço não foi cuidadoso nos discursos que fez até agora. Prometeu o mundo. Procurou esvaziar o discurso da oposição assumindo, de forma radical, o discurso anticorrupção. E se se prova que está envolvido nos negócios da Odebrecht — sob investigação no Brasil — como é que fica?

Mas a Isabel não é vista como um símbolo de sucesso em Angola?

É a maior vilã da história de Angola. A população tem um ódio maior à Isabel do que ao pai. Quem conhece bem a Isabel sabe que aquela ideia da inteligência é tudo relações públicas aqui em Portugal. Nós conhecemos bem a Isabel em Angola. A Isabel não era uma pessoa de difícil acesso. Era ela quem ficava à porta do Miami Beach [restaurante e clube de praia] a vender bilhetes e a selecionar quem entrava. É praticamente uma sanzaleira, mas depois deram-lhe um ar assim bonito, simpático. Sempre foi mazinha, sempre teve aquele fio de maldade do pai. Mas era inofensiva até aparecer toda essa corte baseada em Portugal e o Sindika, que lhe deram ar de respeitabilidade e de empreendedora de sucesso. Para a população que não a conhece e que lê a imprensa é uma vilã.

Porquê?

Tem o monopólio da Unitel [empresa de telecomunicações], que é uma coisa caríssima e rouba o crédito das pessoas. Fazem duas chamadas e ficam sem crédito. O supermercado dela é o mais caro, impinge os cartões à Sonangol e assim tem uma fonte de divisas permanente. Acabou com uma série de generais e outros indivíduos corruptos, mas substituiu-os por empresas dela. Há um aspeto de que ninguém fala, por causa das relações públicas, ela é presidente da Cruz Vermelha de Angola (CVA) há mais de dez anos. Ela matou a CVA. Matou. Neste momento não tem qualquer tipo de atividade e ninguém diz nada. Mas ela usa esse cargo fora do país.

Se ela é assim tão odiada porque é que não há uma revolta popular?

É só ir às redes sociais e ver que as pessoas dizem tudo o que pensam sobre a Isabel. Há dias, em Angola, estava toda a gente a insultá-la e ela aparece, em Londres, como convidada do “Financial Times”. E as pessoas dizem: “Mas estes gajos estão a gozar connosco.” Em Angola não é tolerada. De tal forma que raramente põe os pés na Sonangol.

O que nos está a dizer é que a oligarquia que esteve à frente de Angola — Isabel dos Santos, José Eduardo, Kopelipa — está em dificuldades?

Estão em risco grave. O João Lourenço é um homem bruto. Não é um tipo refinado nas decisões, no linguajar. No momento em que decida transformar isso numa luta... Alguém disse que o discurso dele na tomada de posse parecia o Rafael Marques a falar. É o mais anti-MPLA. Nem a oposição teria feito tal discurso. Para ser mais preciso: é anti-Dos Santos.

E qual é o papel do vice-presidente Bornito de Sousa?

Há dois grandes intriguistas dentro do MPLA. O chefe deles todos, o José Eduardo, e o Bornito. E, como é mais bem preparado, vê que num mês de Governo a figura do vice-presidente desapareceu. Está à espera. Há um dado certo: não haverá reeleição para o João Lourenço. Nas próximas eleições o candidato será outro.

Como é que esse dado é tão certo?

Ele foi a escolha para tirar o José Eduardo.

Assim como o José Eduardo tinha sido a escolha mínima na altura do falecimento de Agostinho Neto.

Mas aí havia as tropas cubanas, os assessores soviéticos, a conjuntura internacional que não permitia debate interno. A maior oposição à Tchizé [filha de José Eduardo dos Santos], se acompanhar as redes sociais, os que mais a ofendem, são os indivíduos da JMPLA [Juventude do MPLA] com assento no Parlamento e fazem-no nos grupos de WhatsApp do MPLA.

E ofendem-na porquê?

Ela é completamente tola. Tchizé e Zenu estão debaixo de fogo.

O Fundo soberano também é sítio onde se irá mexer?

O banco do Zenu declarou como lucros, este ano, três mil dólares. E este banco, e alguns dos tipos deste banco, são gestores do fundo. Se o banco dá três mil euros de lucros, como gerem três mil milhões de dólares? São perguntas que têm de ser feitas.

E a nível da relação de forças nas Forças Armadas. São fiéis a quem?

Antes das eleições, o Presidente fez o famoso decreto em que o novo Presidente não podia mexer nas Forças Armadas. E fez logo todas as nomeações para os comandos. O João Lourenço pode mexer no chefe da inteligência militar, mas não pode mexer em mais ninguém. A lealdade é para os generais da corte do José Eduardo. Quando olho para a lista do Governo do João Lourenço, penso que não poderia ter formado um Governo pior.

Porquê?

O Governo é francamente mau. Mau, mau, mau. Este ministro da Defesa, que ele colocou agora, o general Kianda, é o que chamamos mais velho sem juízo. João Lourenço fica muito ocupado a tomar conta de assuntos internos e não há possibilidade de fazer as reformas necessárias, porque os tipos são francamente maus. O indivíduo que colocou para substituir o Kopelipa, o general Pedro Sebastião, é famoso por ser preguiçoso. É visto regulamente a almoçar nos hotéis.

E qual é o papel da Ana Lourenço?

Servirá de conselho a João Lourenço. A ideia da Ana como mulher bastante capacitada é uma ideia muito empolada. É preciso conhecer a história da Ana: ela foi prisioneira política e o noivo fuzilado. Ironicamente, uma das pessoas envolvidas no fuzilamento da família do noivo é primo de João Lourenço. É o indivíduo que foi enviado agora para Cabinda, um dos grande assassinos do 27 de Maio. A Ana Lourenço fez uma grande travessia do deserto, como tinha o estigma do 27 de Maio as pessoas afastavam-se dela. Nessa altura, conheceu o João Lourenço, que era governador de Benguela, e precisava de uma mulher mais refinada. Praticamente conheceu-a e, em dois dias, marcou o casamento. Como comandante e comissário tinha poderes para a reabilitar e reabilitou-a. Ela terminou o curso de Economia, foi para o Ministério do Planeamento, onde fez carreira, e chegou a ministra. O Ministério do Planeamento nunca teve um papel relevante na gestão do que quer que fosse. De vez em quando, emitia um parecer, mas nunca ninguém percebeu o que fazia. O João Lourenço era o comissionista da Ana Dias [nome de solteira], como não tinha uma função de relevo no Governo, estava apenas na Assembleia Nacional. Quando a Odebrecht quisesse pagar pelos pareceres favoráveis ia pagar-lhe a ele.

Apesar de o MPLA estar no poder há 42 anos, de tantas críticas, mesmo mudando de líder, o que justifica que continue a ganhar as eleições?

Tem um monopólio de controlo absoluto do poder eleitoral. É preciso reiterar: não houve apuramento de votos em 15 das 18 províncias.

Não houve resultados oficiais em 15 das 18 províncias?

Apresentaram-se resultados oficiais sem apuramento dos votos. Vai-se ao site da Comissão Nacional de Eleições e não há a distribuição dos votos por município. Dá mais trabalho fazer a conciliação dos números inventados a nível nacional com os números a nível municipal.

Então não foram umas eleições justas?

Nem de longe. Estas eleições foram uma brincadeira. Gastaram-se mais de 400 milhões de dólares neste processo para não se contarem os votos. As pessoas dizem: mas o MPLA ganharia à mesma. Está bem, mas então porque é que não deixou que se apurassem os votos? Nas eleições de 2008 tiveram 81%, nas de 2012, 71%, e agora 61%. É muita coincidência. À medida que o descontentamento vai aumentando, eles vão reduzindo administrativamente. Ou vão aumentando os deputados da oposição. Por exemplo, a CASA-CE [coligação formada em 2013] não era conhecida em Cabinda e ganhou dois deputados. Não era possível ao MPLA, sequer, mentir que era possível ganhar em Cabinda. Mas para não dar os deputados à UNITA deu-os à CASA-CE.

A UNITA é a oposição?

Uma oposição formal, política e efetiva não existe. É uma oposição que é feita pouco antes das eleições, mas no quotidiano não existe. Neste momento, o maior opositor do regime é o João Lourenço. Já não me podem agora acusar de andar a perseguir o regime.

Votou?

Não. Nem me registei, porque sabia que as eleições seriam uma brincadeira e que o meu voto não contaria para nada.

Está a fazer um novo relatório. É sobre o quê?

Execuções sumárias extrajudiciais [abre o computador para mostrar os textos e os casos nele retratados]. A 20 de abril, dois jovens, um tinha 20 anos e outro 22, foram mortos. Investigadores disseram à família que eram gatunos e precisavam de morrer.

São execuções ao estilo Duterte?

E são torturados antes. É uma ação metódica por parte da polícia para eliminar delinquentes. E muitos deles estão inocentes. Vão atrás de pretensos criminosos. Identificam os alvos através de fotografias em iPads. Uma das vítimas estava sentada, com duas crianças ao colo, e fuzilaram-na. Como estes indivíduos são muito mal preparados, acontece, nestes bairros, o que aconteceu no Brasil e nas Filipinas, acabam por ser eles os controladores do tráfico, dos assaltos de viaturas. São eles que dizem aos bandidos para cometer certos assaltos. Eu, na cadeia, via indivíduos que saíam da cela, de noite, iam cometer os crimes e de manhã voltavam à cadeia.

Está a investigar há quanto tempo?

Há um ano. É algo que sempre foi praticado, mas de uma forma arbitrária. Essas equipas são colocadas, sobretudo, em Viana e Cacuaco [províncias de Luanda]. Eles pagam a homens ligados aos SIC [Serviços de Investigação Criminal, um órgão dependente do Ministério do Interior] para matar. Há uma grande disputa entre o SIC e a polícia criminal. A polícia tortura e liberta. Às vezes acabam por morrer na cadeia porque a tortura é em excesso. Esse é o procedimento da polícia, eles adoram torturar. O SIC está colocado em todas as esquadras; regra geral, é quem faz o trabalho de tortura.

Isso é uma política do Estado ou uma política das polícias?

É uma política do ministro do Interior, Ângelo da Veiga Tavares. Dou-me bem com alguns dos principais comandantes da polícia e eles dizem que não têm nada que ver com isto. Só pode ser o ministro. Eu escrevi-lhe uma carta, falei com ele [mostra a carta].

O que lhe disse ele?

Acusou-me de defender apenas bandidos e não defender os polícias que também são mortos. Eu disse-lhe que entreguei o caso à PGR, não quero ser juiz em causa própria. E ficámos ali, às voltas. Como não me deu uma resposta oficial, vou, por uma última vez, enviar-lhe uma nota a avisar que irei publicar o relatório. Passaram-se cinco meses.

Parece o sistema que vigorou no Rio de Janeiro, em que a polícia liquidava também.

Exatamente. E retomaram os assassínios depois das eleições. Depois de eu escrever a carta, houve uma redução considerável.

Mas estão envolvidas questões políticas de oposição?

Acaba por ter um cunho político. As zonas escolhidas para este tipo de ações são zonas em que a oposição tem maior influência, 70% das famílias são do Huambo, Benguela e Bié. É para manter estas zonas em estado de guerra. Em estado de medo. Se houvesse rebelião, partiria destas zonas, onde estão as pessoas mais desfavorecidas. Se elas já vivem sob este estado constante de medo, porque veem tipos a matar todos os dias e a serem mortos, o que podem fazer? É cuidarem da sua vida e fecharem a boca. Não falarem sobre política nem sobre mais nada. Por exemplo, eu fiz um vídeo para mostrar o tipo de pessoas que eles matam [mostra uma reportagem com um sobrevivente das execuções]. Estes é que poderiam ser o bando de rebeldes. Poderiam aderir às manifestações. Há um indivíduo que explica como começaram a matar por bairros. Eles matam e os polícias da esquadra depois vão recolher os corpos.

O objetivo tem que ver com a imagem de delinquência?

Se esta política tem que ver com o combate à delinquência, o que seria dos delinquentes que estão no Governo. O povo tem direito a matá-los? Os maiores bandidos estão no Governo.

Também fala de um campo da morte. O que é?

É um campo junto a uma escola, em Viana, onde as crianças jogam futebol e, regularmente, levam para lá indivíduos para os fuzilar. Chegam lá e fuzilam. E pronto. Numa das alturas, estavam crianças presentes porque decorria um jogo de futebol. Muitos transeuntes vieram aplaudir a ação do SIC, dizendo que era bem feito porque os jovens eram marginais, atormentavam a população e a polícia estava a fazer um bom trabalho. A população pisoteou os corpos. Outros diziam que os mortos estavam a ressuscitar e atiravam-lhes areia. São 400 a 500 casos por ano. É muita gente que estão a matar. Consegui identificar 200 vítimas.

Fez várias acusações nesta entrevista. Está prestes a publicar mais um relatório e vai voltar a Angola. Não tem medo?

Fiquei satisfeito com o discurso de João Lourenço, que podia ter sido feito por mim. Disse coisas que venho dizendo há muitos anos. Porque é que hei de ter medo em dizer aquilo que o Presidente agora diz?!

Mas já chegou a ser raptado, já esteve preso, tem vários processos.

É um risco que agora o Presidente também corre [risos]. Com uma grande diferença, ele não precisa falar, pode fazer.

Tem ambições políticas?

Sou um cidadão, não preciso entrar na política para ter uma posição com influência e com capacidade de afetar certas políticas. Eu tenho essa influência e não preciso de ser político. Tenho-a porque sou um cidadão engajado. Se virem os números de leitores por cada texto [no site ‘Maka Angola’], demonstra o poder de opinião que tenho em Angola.

É a verdadeira oposição ao regime?

Não é oposição. A sociedade precisa de informação, de análise credível. E eu faço isso. Se estivesse em Portugal, certamente não seria mais crítico do que o Nicolau Santos. Mas ninguém me chamaria oposição. Porque é que, em Angola, por fazer o meu trabalho de análise crítica, tenho de ser oposição? Se eu quiser, a Constituição confere-me o direito de entrar para a política a qualquer momento. Eu escolhi, como jornalista, como investigador, dedicar-me à análise dos assuntos principais do país. Porque não tenho capacidade de fazer mais, cinjo a minha crítica a duas questões fundamentais: a corrupção e os Direitos Humanos.

Como faz o seu trabalho?

Tenho imensos colaboradores. Colaboradores ad hoc que na sua maioria são até pessoas ligadas ao próprio regime, mas que têm uma opinião de cidadania e querem mudanças. Há dias soube de um conflito que se está a gerar porque o João Lourenço chamou a si as autorizações das transferências cambiais para o exterior. E não foi a oposição que passou esses pormenores, não foram os estrangeiros, não foi a CIA. Foram pessoas do MPLA. Como aqui em Portugal, os jornalistas sabem o que se passa no Governo porque têm as suas fontes no Governo. Não é nada diferente. Mas criou-se a ideia — uma ideia que deve ser esbatida — que quem faz esse trabalho é o mau, o indivíduo suspeito. Por isso, é que me perguntam sempre: mas você ainda está vivo? E como é que não o mataram? E ninguém pergunta porque é que ainda não mataram os corruptos? Os ditadores? Os opressores?

Não tem medo?

Faço uma vida normal, ando à vontade.

Mas nunca se sentiu vulnerável?

Todos nós nos sentimos vulneráveis em Angola. E eu também. E faço sempre uma pergunta: Angola tem a maior taxa de mortalidade infantil do mundo, essas crianças criticaram José Eduardo dos Santos? Essas crianças criticaram o MPLA? Os seus pais fizeram algum mal ao MPLA? E estão a morrer. Porque se rouba o dinheiro quase todo da saúde; porque o Governo não faz nada para reduzir a taxa de mortalidade infantil, com medidas que incluem a redução da pobreza. Estas crianças morrem de forma inocente. Os pais são cúmplices, não reivindicam de forma persistente. Se as crianças morrem é pelo silêncio dos pais, não é pelas críticas que se fazem ao regime.

Estamos a falar de um país em que, há pouco tempo, houve gente presa por ler um livro.

Há mais gente presa em Angola de forma inocente do que por ler um livro. E no caso dos jovens presos por lerem um livro, se não houvesse indivíduos como eu que, desde a primeira hora, tomaram o partido e mostraram ao mundo que eles não cometeram qualquer crime, não teria havido mobilização internacional. Se eu me tivesse calado e não tivesse interagido com essas famílias? Ter-se-ia criado a ideia de que, de facto, estavam ali a criar um golpe de Estado, alguma coisa mais grave, quando era uma brincadeira. Alguém teve de arriscar para defendê-los. Alguém tem de continuar a arriscar para defender aqueles que não têm voz, que de forma inocente são vítimas do aparelho repressivo, são vítimas indiretas do saque desenfreado da elite presidencial. E que morrem. Tivemos no ano passado uma grande crise de febre amarela, morreram centenas de pessoas. Passei uma semana a monitorizar a morgue de Luanda.

E nem água havia. Nós vimos os seus vídeos no YouTube.

E a OMS, a comunidade internacional, ajudou o Governo a publicitar estatísticas falsas. Houve conivência internacional para abafar uma epidemia gravíssima. Só num dia contei 280 caixões a sair da morgue. Nos cemitérios havia 500 funerais por dia.

Ainda existe a Open Society em Angola (ONG criada por George Soros para o desenvolvimento da democracia)?

Não sei. Desliguei-me em 2004, há 13 anos.

Incomoda-o que ainda o liguem a ela?

Não. É porque não têm mais nada para falar. Isso prova quão aflitos estão com a minha atividade, quando recordam que há 13 anos trabalhei para uma organização. E fiz um trabalho do qual me orgulho. E o meu principal parceiro foi o Governo. Trabalhei para o Soros com muito orgulho e fiz muito por Angola. Eu tinha um projeto de formação de professores do ensino primário nas escolas do Estado. Até ao dia em que fui embora tínhamos treinado 4500 professores em parceria com o Ministério da Educação. Todo o staff que trabalhava para mim tinha sido convocado pelo Ministério. E aqui dou um recado à Isabel: quando fiz este projeto, fui buscar quadros locais, fiz o projeto com pessoal angolano. Fui buscar dinheiro ao estrangeiro para beneficiar o país. Não fui buscar administradores a Portugal ou aos EUA.

É possível ser ativista e jornalista?

Coloquem um jornalista português ou americano em Angola a fazer jornalismo independente e vejam se vai conseguir. Eu, para poder exercer a minha profissão, tenho de defender e conquistar o meu espaço. Se para isso eu tenho de ser ativista, então eu sou ativista e assumo-o com orgulho. Há algum conflito de interesses? Não. Há alguma ilegalidade? Absolutamente nenhuma. Em Portugal, basta mencionar a lei de imprensa ou a Constituição. Em Angola, há uma repressão efetiva, há todo um trabalho de isolamento de quem se queira manifestar, há sanções económicas, financeiras, há vigilância. E todo o mundo sabe que sou vigiado em Angola.

Como consegue proteger as fontes?

Vocês não precisam de fazer isso, mas eu tive o cuidado de enviar os dados do relatório à entidade que estou a investigar. Enviei uma carta ao ministro, à PGR, às instituições e também disse: estão aqui as minhas fontes e se alguma coisa lhes acontecer a responsabilidade é vossa. Sim, é ativismo, mas eu tenho também a tarefa de velar pela segurança das pessoas que falaram comigo on the record.

Como consegue financiar o seu trabalho?

Durante muito tempo, o MPLA, os seus amigos estrangeiros e as empresas de relações públicas pensaram que cortando-me as fontes de rendimento eu acabaria desgraçado e a pedinchar. E comprometeria a minha independência. Há dias, tinha de apresentar uma proposta a uma ONG americana para este relatório, a pedir quatro mil dólares, adoeci e esqueci-me de enviar a proposta. Mas depois, recebi um e-mail a dizer que decidiram atribuir-me dez mil dólares. Podem ver os e-mails [mostra-os]. Outro exemplo, através da Transparência Portugal, há um alemão a querer doar cinco mil dólares ao ‘Maka Angola’. Uma real state developer nos EUA ofereceu-me 10 mil dólares. Está aqui [continua a mostrar os e-mails com as doações]. Há quem faça donativos através do Paypal, são dois/três mil euros por ano. Sem escrever qualquer carta, de julho a outubro recebi 27 mil dólares. Quantos jornalistas em Portugal ganham isto? Sempre que sou convidado para uma palestra — agora vou a Chicago — pagam-me três mil dólares. Ao fim do ano dá para juntar. E tenho o apoio do National Endowment for Democracy [uma ONG americana dedicada ao fortalecimento da democracia, fundada por Ronald Reagan em 1983], que me dá uma bolsa para o ‘Maka Angola’. Não dá para montar uma redação, por isso tenho de depender de colaboradores, de pessoas de boa vontade que querem apoiar. Não há segredos nem financiamentos secretos. A ideia é que eu possa realizar este trabalho com independência. Até camisas me oferecem, não estou a gozar [volta a mostrar outro e-mail]. Posso vestir-me muito bem sem gastar um tostão. Construiu-se uma ideia, patetices que a Isabel diz, sobre o ‘Maka Angola’ ter de mostrar quem são os sócios. É estúpida que nem uma porta, não é preciso ter sócios para ter um website. Sócios de quê?

É fácil as pessoas falarem consigo?

Quando alguns indivíduos da polícia souberam que eu estava a fazer esse trabalho, vieram e confirmaram os nomes dos assassinos. Já tive situações de chegar a determinados sítios e as pessoas dizerem que apoiam a pesquisa, ou a viagem a uma província. A última vez que fui fazer uma investigação no Kwanza Sul, um indivíduo de lá disse-me que não tinha nada para me oferecer a não ser a companhia. Então foi comigo, mostrou-me os lugares. Tive problemas com a polícia mas ele conhecia o comandante e resolveu o assunto. Nos agradecimentos deste relatório, digo que trabalhei com 11 colaboradores, assistentes, de que não revelo os nomes por razões de segurança. E agradeço também a forma, desinteressada e anónima, como um homem de negócios angolano patrocinou os custos de pesquisa de campo aos assistentes. A bondade deste homem também serviu em situações extremas para apoio a alguns familiares e vítimas, como a mãe que tinha desistido de enterrar o filho por não ter nem meios nem apoio para comprar o caixão. E estava ali uma mãe que tinha o direito de enterrar o filho.

Não nos pode dizer quem é esse empresário?

Posso dizer que é do MPLA. Chegou ao pé de mim, estávamos a tomar café, e eu estava a falar destas execuções, e ele disse-me que podia apoiar o trabalho. Com dois milhões de kwanzas fiz este trabalho todo, não chega a três/quatro mil euros. Não tenho dificuldades em conseguir o mínimo para fazer o meu trabalho.

Mantém uma relação com as pessoas que entrevista para estes trabalhos?

Mantenho.

O que aconteceu a Linda Moisés da Rosa, a mãe de dois garimpeiros que perderam a vida por causa dos diamantes e cuja história deu a conhecer em “Diamantes de Sangue”?

Continua lá, com imensas dificuldades. Falamos regularmente. E sempre que posso, procuro apoiar estas pessoas. Nas Lundas [zonas diamantíferas], quando acontece algum problema, comunicam-me. Têm confiança no trabalho que faço. A ideia que se criou de que o Rafael é da CIA... Gostava de ver esse dinheiro da CIA. Se tivesse esse dinheiro da CIA não teria sido o João Lourenço a chegar ao poder [risos]. Não teria sido o João Lourenço a ser recebido no Pentágono [risos].

Já consegue ter visto na embaixada portuguesa em Luanda?

Não tive durante 12 anos, mas com a subida de António Costa ganhei um visto de cinco anos, o ano passado.

O Rafael tem consciência que se tornou um dos rostos da Angola moderna?

Da mesma forma que não ligo aos meus detratores, também não ligo aos que me elogiam. Mas vejam este artigo do ‘Maka’, que publiquei há 6 horas e vai em 13 mil visualizações... Os mais fracos têm 27 mil visualizações. Tenho audiência e isso é o que os incomoda. O “Jornal de Angola” não tem a audiência que eu tenho. Nenhum site de notícias governamental tem mais seguidores do que eu. Eu influencio. E esta é a questão fundamental. Isso não é poder?

Expresso

Last modified on Segunda, 06 Novembro 2017 09:34
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