Eleito presidente da UNITA em Novembro do ano passado, Adalberto Costa Júnior teve tudo menos um primeiro ano normal como líder da oposição em Angola, devido às consequências da pandemia de covid-19 que permitiu ao Governo adiar mais uma vez a criação das autarquias e das eleições locais. Num ano de muita contestação pública da acção do Presidente João Lourenço, por causa do agravar da crise económica com a pandemia e das dificuldades generalizadas, os protestos são, para Adalberto Costa Júnior, um sinal da crise generalizada que faz com que hoje “haja fome em Luanda”, algo que se sentia no resto do país há muito, mas não na capital, diz.
Muito crítico da actuação de João Lourenço, a quem acusa de ser conivente com a corrupção através da adjudicação de grandes obras públicas directamente sem concurso público, o líder da UNITA é muito cáustico em relação à actuação do Tribunal Constitucional angolano que chumbou definitivamente esta semana a inscrição do partido de Abel Chivukuvuku, o PRA-JA Servir Angola. “É uma autêntica vergonha”, afirma sobre o comportamento do tribunal que, no seu entender, em todos estes anos tem sido “péssimo a todos os níveis”. Uma actuação que é “uma pouca-vergonha” e que resultou, por exemplo, num acórdão que impede o Parlamento de fiscalizar o Governo sem autorização do Presidente da República, que é o chefe do Governo. E está solidário com a manifestação de protesto que Chivukuvuku marcou para o próximo sábado, porque em Angola se está “a viver num Estado autoritário, não democrático” e “mesmo que haja decretos presidenciais que limitam o direito” à manifestação, “é preciso manifestar-se”.
Foi eleito há pouco mais de um ano para a liderança da UNITA, este não era propriamente o ano que estava à espera?
Tirando a covid era exactamente o que estava à espera. A covid veio trazer substantivas alterações à nossa vida e hoje está a servir de desculpa para duas questões fundamentais. Em primeiro lugar, a anulação dos compromissos institucionais, tudo o que diz respeito a eleições e, nesta matéria, o país está a caminhar sem agenda. Estão a ocorrer eleições em todo o mundo, na África Austral também, a nossa vizinha Namíbia fez eleições há duas semanas com a particularidade de que a oposição ganhou a maioria das câmaras; no Malawi também a oposição ganhou as eleições, então aumentou o medo de quem está no poder. Em segundo lugar, a covid está a servir para limitar a circulação dentro do país. Temos uma cerca [sanitária] em Luanda desde o princípio do estado de emergência, em Março, que nunca foi levantada e tem consequências dramáticas sobre a vida das pessoas, mata muita gente. Teoricamente foi levantada para proteger, mas as consequências económicas e sociais acabam por ser muito danosas.
Não se justificava essa cerca sanitária?
A nenhum nível. Na última grande reunião do Conselho da República, todos os representantes das áreas sociais criticaram a cerca de Luanda, inclusive os empresários. É mais um argumento político do que outra questão e é mais perverso do que defensor da vida. A cerca está a matar muita gente.
O Presidente diz que não houve um adiamento das autárquicas porque elas não tinham sido marcadas, apenas tinham sido apontadas para 2020, mas não havia uma data fixada.
É a mais clara expressão da falta de seriedade que temos hoje na condução dos destinos do país. As eleições autárquicas não são uma realidade de hoje e o Presidente da República que temos não é uma personagem à margem das estruturas de liderança, seja do partido [MPLA], seja do governo. A Assembleia Nacional aprovou um percurso de aprovação de leis e de datas de realização de eleições em Maio de 2015; aprovou o plano de tarefas – chama-se mesmo assim – para realização das eleições gerais e autárquicas e João Lourenço era vice-presidente da assembleia e sabe bem que havia um compromisso de calendário para a realização das autarquias que o MPLA não cumpriu. Ele é dirigente de topo, saiu da vice-presidência da Assembleia para ministro da Defesa e depois para Presidente da República, portanto, não pode estar a dizer que desconhece os compromissos estratégicos do país. Tivemos eleições gerais em 2017 e deveríamos ter tido eleições autárquicas que não foram marcadas. O Presidente da República, logo eleito, convocou o Conselho da República e o conselho produziu um comunicado determinando que 2020 era o ano das eleições autárquicas e ele está a dizer “não tenho responsabilidade política sobre estas coisas”, como se fosse possível! Mais ainda, o Presidente João Lourenço foi à Assembleia Nacional em 2018 dizer que haveria eleições autárquicas em 2019 e voltou a repetir em 2019, na abertura do ano legislativo – determinou prazos e pormenores da realização das autarquias em 2020. Isto demonstra uma enormíssima falta de seriedade.
Há muita decepção para quem acreditou num homem que apareceu como reformista. Foi assim que anunciou o seu mandato: ninguém está acima da lei, combate à corrupção deveria ser universal. Hoje está ao ponto de anular os compromissos institucionais, ainda por cima brincando com questões sérias. Com um lado perverso: num encontro com juventudes há duas semanas ouvi o Presidente de Angola dizer: “Não posso fazer eleições em 2020”. É óbvio, estamos em Novembro/Dezembro, mas, então, porque não fazer em 2021? E ele remata: “Não acredito que seja possível fazer”.
Por que é tão importante a realização das eleições autárquicas? A UNITA precisa dessa descentralização de poder para demonstrar ao povo angolano que pode governar?
O problema das autarquias está muito para além da UNITA, é um problema nacional e enquadra-se num desafio que hoje todo o angolano com sensibilidade sabe que é incontornável. O país precisa com urgência da revisão da Constituição e da reforma do Estado. Não somos uma democracia funcional. Temos uma Constituição que diz que Angola é um Estado democrático e de Direito, mas não temos funcionamento de um Estado democrático e de Direito. A liberdade de informação é uma ilusão e a tendência é constituir monopólios sob controlo do Estado que agridem a liberdade de imprensa e servem para combater os partidos da oposição. Têm telejornais inteiros dedicados a destruir a imagem do líder da oposição e ele não é convidado, não há contraditório. Esta é uma prática nova, mesmo com José Eduardo dos Santos nunca tínhamos visto este exagero. Hoje João Lourenço vai se mostrando na sua verdadeira dimensão de autoritarismo sem limite.
Mas a UNITA precisa das autarquias?
Não é apenas a UNITA, é o próprio país. A Constituição actual dá ao Presidente da República o estatuto de um Deus que tem de tal forma poderes excepcionais que se dá ao luxo de anular agendas de âmbito nacional. O Presidente da República não vai à Assembleia prestar contas – há um acórdão do Tribunal Constitucional desde o tempo de José Eduardo dos Santos que continua a vigorar hoje e que diz que os deputados não podem fiscalizar o governo sem a autorização do chefe do Governo. Isto é um absurdo! Significa que onde não há fiscalização, onde não há controlo, nas empresas, no Estado, em qualquer tipo de órgãos com responsabilidade, não há boa governação. Então, o que é que as autarquias trazem ou podem trazer de novo? Não são um milagre em si, mas são a devolução de uma parte do poder ao povo – as autarquias aproximam o governante dos governados. Hoje as pessoas estão numa circunstância em que o poder central ocupa mais de 90-94% das decisões locais, isto só traz desastres. A corrupção foi também incentivada pela inexistência desta proximidade. As autarquias vão trazer também alguma transparência acrescida a todos os níveis, na gestão da coisa do Estado.
E o argumento de que faltam quadros para conseguir realizar tantas autarquias ao mesmo tempo?
É uma pura mentira. Angola tem hoje 164 municípios, eles não estão a funcionar debaixo das árvores: existem administrações municipais, existe logística, existem instalações, existem todas as condições de funcionamento. Qual é a diferença? É que hoje os administradores são nomeados pelo Presidente da República, portanto, não têm legitimidade democrática. Quando queremos dar-lhes legitimidade democrática, João Lourenço diz que não pode fazer eleições. Portanto, é fácil de entender, o MPLA está assustado com a perspectiva da perda dos poderes absolutos com que se habituou a governar todos estes anos. Quando tivermos autarquias, cada autarca, mesmo os eleitos do MPLA, vai perceber que deixa de responder ao Presidente da República e passa a responder a quem o elege: o povo.
Até que ponto a não-realização das eleições afecta os objectivos que tinha quando assumiu a liderança do partido?
Prejudica, porque adia o país. Pode retardar o objectivo das metas estratégicas que eu, enquanto líder, também preconizo. Que Angola temos hoje? Temos um país com uma gravíssima crise económica, no quinto ano de recessão, que gerou uma crise social dramática. Hoje morre-se de fome em Luanda. Já se morre de fome no país há muito tempo e hoje, na capital, encontra-se muita gente a ir comer as recolhas do lixo – é absolutamente dramático.
A covid e estes adiamentos trazem crise institucional, trazem crise política. Não há qualidade de diálogo institucional. Vai-se a uma manifestação e vê-se o governo a disparar balas reais contra jovens. Quando se usa um decreto feito à noite para impedir direitos constitucionais, isto é a demonstração mais clara de que nós não estamos a viver em democracia, estamos a viver em ditadura. E um partido que lidera a oposição em Angola, necessariamente tem programas e projectos de alternância para o país, mas não pode viver exclusivamente a pensar na alternância, a preocupação é bem mais ampla: como é que vou ter um país melhor? Como é que vou combater a fome, a pobreza, uma pobreza que está galopante e que hoje ultrapassa os 60% a 75% da população?
Estamos num movimento de regressão permanente, temos uma amostragem muito publicitada de que o combate à corrupção hoje faz lei, o que não é verdade. Em Angola, hoje combate-se os que se querem perseguir e protege-se uma série de outros corruptos de grande dimensão. A contratação pública dos últimos três anos é um desastre completo no que diz respeito a transparência. Agora mesmo estão a ser entregues de forma negociada, simplificada, sem concursos, contratos bilionários. Como posso aceitar que a barragem de Caculo-Cabaça [a maior de Angola], por exemplo, avaliada em cerca de cinco mil milhões de dólares, tenha sido agora de novo entregue em contratação simplificada à Omatapalo e a outra empresa que pertence a Manuel Vicente [Griner]?
Está a dizer que João Lourenço é corrupto ou conivente com a corrupção?
É conivente, de forma objectiva. Os meus elementos de prova são os Diários da República assinados pelo Presidente. À Procuradoria-Geral da República (PGR) compete-lhe fazer investigações a este nível, mas a PGR só investiga sob autorização do Sr. Presidente da República, o que mata a autonomia do poder judicial.
É indiscutível. Então o Presidente da República que tem como elemento mais importante do seu mandato, segundo ele próprio, o combate à corrupção, tem como Ministro de Estado um elemento acusado de corrupção? Com um agravante, há assinaturas do punho do próprio Presidente neste mandado de contratos que foi o Edeltrudes que interpretou, portanto, outro elemento de violação da lei de probidade pública.
As últimas informações de que o ex-vice-presidente Manuel Vicente poderia estar a ser investigado por casos de corrupção é um sinal de mudança de João Lourenço?
O Presidente tem necessidade de deitar mão daquilo que não queria para tentar recuperar algum índice de popularidade, ou para tentar recuperar alguma credibilidade hoje destruída daquilo que foi uma assunção do início do seu mandato. O problema do Edeltrudes não é exclusivo, este problema da contratação pública é muito mais grave. Cito três casos destas últimas duas semanas, além do da barragem de Caculo-Cabaça: a refinaria de Cabinda, o porto do Dande e a marginal de Luanda, qualquer deles com valores de 700, 800, 900 milhões dólares, todos entregues em contratação simplificada – isto é um crime. O elemento mais estratégico de fomento à corrupção é a contratação pública sem concursos, este é que é o grosso dos roubos a nível mundial e é exactamente aqui que João Lourenço está a mostrar-nos que está abraçado a este incentivo, ao incentivo à corrupção. Quem está a adquirir estes trabalhos? Naturalmente aqueles que lhe retribuem. Isto em Portugal dava demissão do governo, imediatamente.
Em 2012, a UNITA alegou fraude nas eleições. Em 2017, voltou a gritar mais alto, chegando a dizer que os seus deputados não assumiriam os seus lugares na Assembleia Nacional. Depois, acabou por assumir os lugares. Isso não retira credibilidade às críticas do partido?
Quem aqui está em circunstância alguma gostaria de ver repetir exactamente os cenários que aqui traz, que são cenários de descredibilidade. Fomos acompanhando eleições sem transparência e a UNITA foi utilizando sempre fórmulas distintas, denunciando e acabando por aceitar. Publicou o livro branco sobre as eleições de 2008 e quem o lê chega facilmente à conclusão de que estamos distantes de qualquer processo transparente. Em 2012 já não fez isso, levou à Justiça elementos de causa e de prova, o Tribunal Supremo arquivou tudo sem julgamento. Nas eleições de 2017, antes do fim da campanha eleitoral, a UNITA moveu um processo de corrupção eleitoral contra o candidato João Lourenço. A UNITA filmou, gravou e apresentou provas factuais de que João Lourenço estava a fazer a compra do voto e a manipular o voto através de processos de corrupção eleitoral. Os tribunais nem sequer abriram o processo. Quem está hoje na liderança de um partido como a UNITA tem que debater estes exemplos com muita antecipação. Num encontro privado com o Sr. Presidente, puxei a necessidade de o Governo angolano e do seu líder abraçar a reforma de algumas leis que temos que não são democráticas, nomeadamente a lei eleitoral. Nós temos na SADC uma lei de referência, a lei modelo eleitoral, o Parlamento angolano nunca usou esta lei modelo para melhorar os aspectos necessários da nossa lei. Há uma resistência enorme do MPLA.
Se em 2017 fosse líder da UNITA teria levado avante a ideia de não assumir os lugares de deputado?
Em 2017 não era presidente, mas tinha responsabilidades relevantes e assumo em pleno todas as opções do partido. Dentro das estruturas do partido participei nos debates e sou absolutamente solidário com as decisões que o partido tomou. Decorrente da experiência, não queria repetir este cenário. Porque não é bom para o país, não é bom para a UNITA. Descredibiliza, efectivamente, as instituições e a própria UNITA, por consequência.
Não podemos aceitá-los, de forma nenhuma. Não podemos permitir. A realidade de hoje não é igual à realidade de 2017, o país hoje está a testemunhar um ganho de consciência cívica sem precedentes e quem governa tem que estar atento a estes gritos de alerta. Os gritos de alerta não são desencontrados com a realidade que vivemos e somos actores dinâmicos desta sociedade e estamos a cumprir o nosso papel.
PÚBLICO