“Acho que uma democracia se testa com a transição do poder e as nossas ainda não foram testadas nesse nível”, disse José Eduardo Agualusa, em entrevista à Lusa, em Maputo.
A primeira consequência da falta de alternância de poder é “apropriação do aparelho do Estado” pelas forças políticas dominantes, notou o escritor.
“Esse é um dos grandes desafios quer em Angola, quer em Moçambique, a despartidarização do aparelho do Estado, que resulta do facto de os partidos que fizeram as independências nunca mais terem deixado o poder”, afirmou.
O domínio destas forças políticas nestes países durante as últimas décadas criou uma “série de vícios”, incluindo aspetos ligados às linhas ideológicas destas forças, alertou o escritor.
“Hoje é difícil dizer, por exemplo, coisas tão simples como se o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) é de esquerda ou de direita. O MPLA juntou-se ao longo destes anos a uma série de oportunistas, pessoas que não têm nem ideologia política definida”, declarou o autor de “Os Vivos e os Outros”, acrescentando que seria benéfico para o partido no poder em Angola passar para a oposição.
“Se passasse (o MPLA) para a oposição era oportunidade de se purificar, rejuvenescer e renovar. Acredito que uma alternância do poder seria positiva para Angola”, frisou Agualusa.
O escritor encontra semelhanças entre as democracias dos dois países, apontando limitações e ganhos que marcam Maputo e Luanda, numa altura em que cresce o sentido crítico da sociedade nos dois países.
“Neste processo de democracia, vamos dizer que Moçambique tem alguns avanços, no sentido em que tem, por exemplo, eleições para o poder local já há bastante tempo, inclusive com transição ao nível do poder local e em Angola nunca tivemos eleições para o poder local”, afirmou.
Em Angola, o debate sobre as autarquias locais já está no parlamento, esperando-se que a legislação seja aprovada em plenário para dar espaço ao primeiro escrutínio autárquico do país.
Se, por um lado, Moçambique, já com seis eleições autárquicas, se mostra num “estágio avançado” no que diz respeito à escolha das lideranças locais, por outro, Maputo enfrenta o desafio da falta de uma “oposição de qualidade” para fazer face ao partido no poder desde a independência (a Frelimo), assinala o prémio literário Dublin (2017).
“Existe algo muito importante para a democracia que é a qualidade de oposição. Angola tem uma oposição unida com qualidade e, infelizmente, Moçambique ainda não tem. Se Moçambique está mais avançado na questão da democracia [com eleições para o poder loca], por outro lado, parece que em Angola existe hoje uma dinâmica positiva de mudança que não existe em Moçambique”, defendeu.
O MPLA e a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) são as formações políticas no poder em Angola e Moçambique, respetivamente, desde as independências, tendo ambos conduzido as lutas de libertação contra o regime colonial português.
As eleições gerais de Angola estão previstas para 2027, enquanto Moçambique realiza em 09 de outubro eleições gerais, que incluem as presidenciais, além de legislativas e provinciais.
Agualusa considera legítimas "reparações históricas" de Portugal às ex-colónias
O escritor angolano José Eduardo Agualusa considerou legítimas eventuais "reparações históricas" sobre a responsabilidade de Portugal por crimes cometidos durante a era colonial, lembrando que o país europeu fez o mesmo em relação aos judeus sefarditas.
"Há uns 12 anos, Portugal decidiu fazer uma reparação relativamente aos judeus que foram expulsos da península ibérica, há mais de 500 anos. A reparação foi dar o passaporte português a quem quisesse e que pudesse provar que descendia dessas famílias de judeus sefarditas. Na altura ninguém protestou", disse José Eduardo Agualusa, em entrevista à Lusa, em Maputo.
"Se os portugueses aceitam fazer uma reparação em relação aos judeus que foram expulsos por que não aceitariam fazer uma reparação aos africanos, que foram sequestrados e escravizados, que é muito pior do que ser expulso", acrescentou.
Em causa estão declarações do Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa, em que reconheceu a responsabilidade de Portugal por crimes cometidos durante a era colonial, sugerindo o pagamento de reparações pelos erros do passado.
"Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto", afirmou Marcelo, num jantar com correspondentes estrangeiros em Portugal, citado pela agência Reuters.
Para o escritor angolano, a livre circulação de pessoas entre Portugal e os países africanos está entre as opções que podem ser adotadas no âmbito desta ideia de "reparação histórica".
"Há muitos anos que se fala na criação de um passaporte lusófono. É tempo de todos nós nos debruçarmos sobre isso e tentar criar o tal passaporte. Essa é a melhor reparação que se pode fazer: facilitar o trânsito das pessoas nestes territórios", declarou.
José Eduardo Agualusa também defende a necessidade de reflexão sobre outras formas de narrar a guerra colonial, considerando que nas antigas colónias existem outras versões que devem também ser ouvidas.
"Existe uma versão em Portugal sobre o processo colonial. Mas os angolanos têm outras versões. Os moçambicanos têm outras versões. Os brasileiros têm outras versões. Então, os próprios livros de história deveriam ser redigidos em conjunto. Um livro de história sobre este processo colonial deveria contar com historiadores portugueses, mas também africanos e brasileiros. E essas diferentes versões da história deveriam estar disponíveis nos bancos da escola", acrescentou.
As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, que antecederam as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, suscitaram um debate em Portugal, com o Chega pedir o agendamento de um debate de urgência no parlamento para que o Governo esclareça se está a ser equacionada a atribuição de eventuais "indemnizações às antigas colónias".
O partido político liderado por André Ventura acusou o chefe de Estado de trair os portugueses e pediu a Marcelo Rebelo de Sousa que se retrate por estas declarações.