As declarações do Presidente da República e líder do MPLA, João Lourenço, à Televisão Pública de Angola (TPA) na última semana estão a levantar interpretações díspares.
Na entrevista, o Chefe de Estado passou ao lado de temas fracturantes como a cólera, que já vitimou pelo menos 700 pessoas, a não-implementação das autarquias, numa altura em que falta um ano e meio para o fim do seu mandato, os custos com as viagens do Presidente ao exterior, a Cimeira Estados Unidos-África, entre outros.
Em contrapartida, há quem entenda que a entrevista do Presidente da República (PR) tenha tido um único fim - desvalorizar a audiência que concedeu ao general Higino Carneiro, face ao impacto que provocou junto da sociedade.
Vale relembrar que a notícia sobre o encontro entre João Lourenço e Higino Carneiro foi dada em primeira mão pelo Novo Jornal , na edição n.º 890, sob o título ‘Candidatura presidencial: Higino já se reuniu com JLO e vai avançar’.
Em declarações ao NJ, o analista Bali Chionga corrobora que o País precisava de ouvir o Titular do Poder Executivo (TPE) sobre a cólera, as autarquias, a Cimeira Estados Unidos-África, entre outras coisas, mas entende que quem pergunta é o entrevistador. “É dever do jornalista perguntar. Não creio que o Presidente fugisse desses assuntos que não são segredos de Estado. Há vários assuntos fracturantes em Angola. O PR respondeu a todas as perguntas que lhe foram colocadas”, diz o analista.
Uma das virtudes do PR, necessárias para líderes nestes tempos, ressalta Bali Chionga, é a coragem. “Goste-se ou não, o PR diz o que pensa. Neste caso, não disse apenas o que pensa, deu voz aos estatutos e a outros instrumentos reguladores orientadores do MPLA”, declara.
Como que a dar razão ao líder do MPLA, Bali Chionga diz que os processos têm tempo próprio e ninguém está predestinado a dirigir o MPLA nem Angola.
O analista deita por terra a ideia segundo a qual está ‘aberta uma guerra’ entre o PR e Higino Carneiro.
“Não está aberta uma guerra. Estão esclarecidos os equívocos e encerrada a especulação sobre abençoados e amaldiçoados pelo PR em relação ao futuro cabeça-de-lista do MPLA nas eleições de 2027”, afirma.
Instado sobre alegada falta de democracia interna no MPLA, por não admitir as múltiplas candidaturas embora previstas nos estatutos, o jurista refere que essa nunca esteve em causa.
“A expressão democracia interna pressupõe dinâmicas de expressão dentro do partido. É nos termos dos estatutos que essa democracia se processa. Curiosamente, alguns esperam que a democracia interna seja exercida no espaço público, com base nas regras estabelecidas por entes alheios ao MPLA”, adianta.
Em resposta à pergunta se Higino Carneiro sofrerá ou não represálias, por ‘manifestar’ intenção de concorrer à Presidência, está certo de que não haverá qualquer represália.
“Houve manifestações anteriores no mesmo sentido. Ao contrário de outros partidos, cujos autores estão suspensos, no MPLA nada disso ocorreu. Nesta base, entendo que não ocorrerá”, disse, numa alusão de que agir à margem dos estatutos aos quais se firma o compromisso de respeitar é um acto censurável, independentemente do status do militante.
Falta de democracia interna é o dilema do MPLA
O agrónomo Fernando Pacheco tem opinião contrária do analista Bali Chionga e acusa o PR de sistematicamente ignorar os temas fracturantes do País, como, por exemplo, a cólera, que considera chocante.
“A percepção generalizada foi de que se tratou de uma entrevista encomendada, com um objectivo determinado. Logo, o entrevistador, como a generalidade dos jornalistas dos órgãos de comunicação social públicos não tem traquejo para voos dessa natureza, não tinha margem para fazer perguntas incómodas. À excepção da Cimeira EUA-África, os assuntos têm sido sistematicamente ignorados pelo Presidente, sendo o caso da cólera o mais chocante, por razões óbvias”, deplora.
Diferente de Bali Chionga, Fernando Pacheco não tem dúvidas de que está ‘aberta guerra’ entre o também Chefe de Estado e o general Higino.
“Claro, a entrevista mostrou isso claramente”, sustenta
A maior represália, deduz, será o assassinato de carácter, tão ao gosto do sistema que atrofia o País desde sempre.
Num recuo à história, Fernando Pacheco recorda que aconteceu com elementos da Revolta Activa, com vários dirigentes incómodos a José Eduardo dos Santos (JES) em diferentes momentos e congressos.
“O próprio Lopo foi uma das vítimas de Moco e França Van-Dúnem em 1998, como antes foram Lukoky, Ludy, Kimba, Kito, Loy, até Lúcio Lara, em certa medida”, disse, tendo afirmado que a lista é extensa.
Fernando Pacheco acrescenta que o mundo está a mudar, mas Angola e o MPLA estão na mesma. Argumenta que as actuais lideranças do MPLA se recusam a perceber a actual realidade mundial.
“Os casos António Venâncio, Sérgio Raimundo, Valdir Cónego, Júlio Bessa, Antas Miguel eram impensáveis há anos, agora poderão representar picadas abertas para a mudança”, descreve.
Afirma mais adiante que a democracia nunca foi um ponto forte do MPLA, ensaiou múltiplas na década de 90, mas não prevaleceu por muito tempo.
“Com Lopo do Nascimento como secretário-geral, até 1998, o MPLA ensaiou uma tímida democratização com a possibilidade de se apresentarem candidaturas múltiplas à Presidência, que foi congelada por JES e JLO, logo no Congresso seguinte, em 2003.
Conta que se foi mais ao longe, eliminando-se uma prática que vinha desde o II Congresso do MPLA, em 1985, que era a possibilidade de os congressistas poderem escolher os membros do Comité Central de uma lista de candidatos que era superior ao número de lugares.
“Era uma escolha pela negativa, não era bom, mas era melhor do que a posterior lista única que dependia, em última análise, do presidente”, recorda.
Mais do que ter efeito perverso, perspectiva Fernando Pacheco, a probabilidade de a entrevista beneficiar Higino Carneiro “é muito grande”.
Uma ‘conversa em família’
Acossado pela edição anterior deste jornal, ressalta Luzia Moniz, João Lourenço faz uma declaração, travestida de entrevista, para atacar o agora promovido a seu adversário interno - Higino Carneiro - e, ao mesmo tempo, tentar abafar o escândalo das suas viagens bilionárias reveladas pelo Novo Jornal .
“Quando vi a pseudo-entrevista, viajei no tempo e aterrei em 1969/74 no programa ‘Conversas em Família’, do ditador português Marcelo Caetano, uma rubrica de propaganda política que visava suavizar o regime fascista”, diz Luzia Moniz.
Impreparado, afirma Luzia Moniz, como é norma, o ainda PR escolheu o simulacro de entrevista com o entrevistador que mais parece um filho e faz uma sentada de família, versão actualizada do ‘Conversas em Família’.
“Sem contraditório, mostrou estar em pânico. Ansiedade e medo do dia seguinte, do fim do mandato, da vida fora do palácio, sem o controlo dos instrumentos aterrorizadores de opositores e críticos”, admite.
Esta edição do ‘Sentada de Família’, insiste Luzia Moniz, destapa a crise interna no MPLA, provocada, por um lado, por visões e posicionamentos politico-ideológicos diferentes, por outro, pela luta pelo poder e pelo controlo dos recursos do País.
“Por isso, vimos um homem disponível a tudo fazer para evitar que o seu sucessor seja alguém fora do grupo dos seus manietados”.
De acordo com Luzia Moniz, tal como em organizações mafiosas, em partidos transformados em agremiações oligárquicas, com o objectivo de enriquecer a cúpula, usando recursos do Estado, as lutas pelo pote costumam ser fratricidas.
“João Lourenço mostra desespero porque tem medo de ser vítima do seu próprio modelo de perseguição de tudo e de todos, de adversários políticos e económicos e de críticos, incluindo diaspórios, enfatiza.
Admite, igualmente, que a entrevista a que chama de ‘Sentada de Família’ mostrou que João Lourenço, ferido e acossado pela pré-candidatura de Higino Carneiro, vai centrar todas as suas energias destes dois últimos anos de mandato na neutralização do seu opositor interno, agora oficializado.
Higino não cometeu erro
Assim pensa António Venâncio, também candidato ao ‘cadeirão’ do MPLA, que busca os estatutos do partido para sustentar a sua afirmação.
“Os nossos estatutos são claros, e a alínea k) do artigo 31.⁰ sobre Direitos do Militante estabelece que é direito do militante candidatar-se a qualquer função ou cargo no MPLA, devendo apresentar à organização de base ou ao organismo a que pertença a sua pretensão de se candidatar.
A alínea i) do referido artigo, reforça António Venâncio, estabelece que é um direito do militante expor todas as questões que considere de interesse para a vida do partido e da sociedade, ao competente órgão ou organismo de direcção, incluindo o congresso directamente, ou através da organização de base ou organismo a que pertença.
“Nestes termos, tenho a ligeira sensação de as palavras do Presidente João Lourenço o terem traído momentaneamente na hora de responder à pergunta do jornalista, quando esse lhe abordou a iniciativa do nosso militante general Higino Carneiro em anunciar, previamente, a intenção ao Comité Central, organismo a que pertence, através de uma audiência prévia com o presidente”, assegura.
No seu entender, a atitude de Higino, membro do Comité Central, ajusta-se “perfeitamente não apenas aos bons critérios da elevação e de cortesia, como acabou por demonstrar boa educação militante”, perfeito conhecimento e domínio das normas democráticas que regem, actualmente, o funcionamento do partido.
“Eu estou convicto de que esta entrevista não irá perturbar o bom andamento do nosso processo de democratização interna, que já vai a bom ritmo com alguns camaradas do MPLA a manifestarem livre e legitimamente a sua pretensão de concorrer à liderança do partido e da República”, realça.
Postura do PR não surpreendeu
No seu ‘desabafo’ nas redes sociais, numa análise que titula “PR incomodado com HC?’, Maria Luísa Abrantes (Milucha) diz que percebeu que, mais uma vez, o PR não conseguiu disfarçar que está “extremamente incomodado” ou irritado com a candidatura de Higino Carneiro.
Fazendo fé na sua análise, tal incómodo não aconteceria, provavelmente, se não houvesse qualquer interesse em influenciar na escolha de um futuro candidato do MPLA à presidência em 2027.
“A postura do PR, durante a entrevista, não me surpreendeu, porque tem sido uma constante, desde o início do seu mandato. Mesmo os cegos que não vêem, ouvem e entendem o tom de voz, assim como os surdos não ouvem, mas entenderam-no pela linguagem facial ríspida”, relata.
Segundo Abrantes, se, para João Lourenço, a campanha eleitoral ainda não se iniciou, é extremamente deselegante e antiético o Presidente de todos os angolanos estar a tentar rebaixar A ou B, ainda que fosse um mendigo de rua, por pretender anunciar com antecedência que pretende candidatar-se às eleições dentro de dois anos.
“Que mal há nisso? Candidato não significa forçosamente vencedor”, rebate.
Em países civilizados, como, por exemplo, nos Estados Unidos, considera, ninguém estranha nem se irrita quando qualquer cidadão declara que pretende candidatar-se à Presidência da República.
“Como exemplo temos o caso recente de uma angolana com dupla nacionalidade que declarou que pretendia ser Presidente de Portugal e nunca ouvimos presidente de nenhum partido e muito menos o Presidente português tecer palavras a desconsiderar publicamente tal candidata com insultos”, exemplifica.
Maria Luísa Abrantes discorda da narrativa do líder dos ‘camaradas’, ao afirmar que não existe democracia interna no MPLA.
“O PR José Eduardo dos Santos não disse publicamente que o PR JLO não era um supergeneral, nem um super militante, ou que nem tinha o mestrado em História?, questiona-se.
Há quem entenda que a entrevista do PR tenha tido um único fim - desvalorizar a audiência que concedeu ao general Higino Carneiro
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