Sonangol: Para onde foram os 131 milhões desviados para o Dubai

Post by: 12 Fevereiro, 2021

Investigação: Novos documentos a que o Expresso e a SIC tiveram acesso mostram o que aconteceu aos milhões de dólares que uma companhia offshore, a Ironsea/Matter, recebeu da Sonangol quando Isabel dos Santos esteve à frente da petrolífera estatal angolana

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As perguntas foram feitas, mas isso não foi suficiente. Antes da divulgação do Luanda Leaks, quando foram confrontadas pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), as três grandes consultoras internacionais que trabalharam com Isabel dos Santos na Sonangol recusaram esclarecer os contornos da relação estabelecida com uma misteriosa companhia offshore no Dubai usada como intermediária nos pagamentos de serviços de consultoria prestados à petrolífera estatal angolana. As explicações que deram na altura foram curtas e evasivas.

Até hoje, mais de um ano depois do lançamento do Luanda Leaks e com inquéritos-crime em curso em Angola e em Portugal relacionados com o fluxo de dinheiro desviado para o Dubai, a PricewaterhouseCoopers, a Boston Consulting Group (BCG) e a McKinsey não divulgaram nem quanto é que receberam através desse esquema nem a troco do quê exatamente. Essas respostas ficaram em branco.

Um conjunto de novos documentos a que o Expresso e a SIC tiveram acesso, incluindo extratos bancários e ordens de pagamento da conta que essa companhia offshore, a Matter Business Solutions, possuía no banco Emirates NBD, no Dubai, revelam agora parte do que aconteceu.

Mais de metade de um total de 131 milhões de dólares faturados pela Matter à Sonangol em 2017, quando a filha do ex-presidente da República de Angola José Eduardo dos Santos liderava a petrolífera angolana, tiveram como destino final a BCG (31,2 milhões), a PwC (21,4 milhões) e a McKinsey (15,4 milhões). Ao todo, estas três consultoras internacionais receberam assim 68 milhões de dólares.

Houve depois, de acordo com os documentos, 5,3 milhões de dólares pagos ao escritório de advogados Vieira de Almeida (VdA) e quase 20 milhões de dólares que foram parar a companhias de consultoria e gestão ligadas a Isabel dos Santos ou a gente que lhe é muito próxima.

Sobraram ainda 31,5 milhões de dólares no Dubai cujo destino final não foi possível confirmar pelo Expresso e pela SIC e que correspondem ao lucro obtido pela companhia offshore e a eventuais custos desconhecidos, em relação aos quais não existem referências e já depois de descontar 7 milhões de dólares retidos em Luanda como impostos.

A 19 de janeiro do ano passado, o Expresso e a SIC, parceiros do ICIJ no Luanda Leaks, tinham revelado como a Matter Business Solutions (cujo nome inicial era Ironsea) foi incorporada em 2016 no Dubai pelo principal gestor de negócios de Isabel dos Santos, Mário Leite da Silva, e pelo seu principal advogado, Jorge Brito Pereira, sendo declarada como acionista única da empresa uma sócia e amiga próxima da filha de José Eduardo dos Santos, a portuguesa Paula Oliveira.

Boa parte do dinheiro da Sonangol saiu de uma conta em Lisboa, passou pela conta da Matter no Dubai e voltou para Lisboa

Um contrato entre a Matter e a Sonangol veio a ser forjado em Londres, na subsidiária britânica da petrolífera angolana, a 10 de novembro de 2017, cinco dias antes de Isabel dos Santos ter sido despedida da Sonangol pelo então recém-nomeado Presidente angolano João Lourenço. Ao abrigo desse contrato, a Sonangol obrigava-se a pagar à Matter todos os serviços de consultoria passados e futuros fornecidos à petrolífera, sem limites de valor. Estes e outros factos, incluindo quase 58 milhões de dólares transferidos para o Dubai a 16 de novembro de 2017, no dia a seguir a Isabel dos Santos ter sido afastada da Sonangol, levaram o Ministério Público angolano a constituir como arguidos a filha do ex-presidente e outros visados no Luanda Leaks, por suspeitas de peculato, abuso de poder, associação criminosa e branqueamento de capitais.

Dessa lista de suspeitos fazem parte o gestor Mário Leite da Silva, a amiga Paula Oliveira e um antigo funcionário da PwC, Sarju Raikundalia, que se tornou administrador financeiro da Sonangol e que foi quem protagonizou o contrato forjado em Londres.

Uma das constatações da análise feita à nova informação bancária é que quase todo o dinheiro pago a consultoras e a advogados através da Matter foi parar a contas bancárias em Lisboa, tirando o caso da McKinsey, que recebeu 15,4 milhões de dólares numa conta no Bankinter em Madrid.

Isso significa que uma boa parte do dinheiro da Sonangol fez um trajeto muito peculiar: saiu de uma conta da petrolífera angolana no Eurobic em Lisboa, passou pela conta da Matter no Dubai e voltou depois para a capital portuguesa, distribuído por uma série de contas em diversos bancos. Um dos argumentos usados por Isabel dos Santos para recorrer a uma empresa intermediária no Dubai foi porque isso poupou dinheiro à Sonangol — mas não teria sido mais fácil e mais barato a Sonangol pagar diretamente às consultoras, sem a necessidade do dinheiro sair de Lisboa?

Numa longa resposta enviada por e-mail, em que fala pela primeira vez sobre o assunto e que o Expresso e a SIC publicam na íntegra online, Leite da Silva assegura que não houve nada de errado no esquema usado e que “no final a Sonangol ficou a ganhar e muito com a intervenção da Matter”. Também contactada, Isabel dos Santos optou por manter-se em silêncio.

Entre o tudo mal da Pwc e o tudo bem da Mckinsey

Entre os documentos fornecidos ao Expresso e à SIC está um contrato de serviços de consultoria entre a Ironsea Consulting — antes de mudar o nome para Matter Business Solutions — e cinco entidades: a BCG, a PwC, a McKinsey, a VdA e uma consultora pouco conhecida, a Odkas.

Esse contrato coletivo, assinado a seis mãos, tem a mesma data, 22 de maio de 2017, que um outro acordo já divulgado pelo Luanda Leaks e estabelecido entre a Ironsea e a Wise Intelligence Solutions Limited (WISL), uma empresa de Isabel dos Santos sediada em Malta e dirigida por Mário Leite da Silva — tal como a Ironsea. A Wise tinha sido contratada pelo governo angolano para reestruturar o sector do petróleo alguns meses antes de o então ainda presidente José Eduardo dos Santos colocar a filha à frente da Sonangol.

Nesse dia, a 22 maio de 2017, num dos contratos a Ironsea recebia das mãos da Wise a posição que esta tinha com o Estado angolano. E, no outro, subcontratava de uma só vez as consultoras internacionais para trabalharem para a Sonangol.

Confrontadas com o conteúdo do contrato coletivo que assinaram e com os valores que lhes foram pagos pela Ironsea/Matter, a BSG, a PwC e a McKinsey não quiseram mais uma vez dar explicações. Mas, mesmo no pouco que disseram, existe um claro contraste entre o entendimento que tiveram sobre os mesmos factos.

O escritório de Lisboa da PwC sublinhou que a empresa tomou de imediato, em janeiro de 2020, as “ações necessárias para pôr fim à relação profissional com as empresas envolvidas”, iniciando “uma abrangente investigação interna às circunstâncias que envolveram essas relações profissionais”, o que levou ao afastamento de dois sócios portugueses da consultora, incluindo Ivo Faria, que era quem tinha a conta de Isabel dos Santos e foi quem assinou o acordo com a Ironsea.

No bolo de 20 milhões de dólares divididos por empresas em Portugal, destacam-se as relacionadas com Isabel dos Santos

A McKinsey, no entanto, prefere não dar importância ao facto de ter sido contratada por uma companhia offshore no Dubai. Numa resposta escrita, a consultora admite que foram feitas “averiguações internas”, mas essas averiguações “não detetaram qualquer irregularidade por parte da equipa envolvida”.

Duarte Braga, que assinou o acordo com a Ironsea em nome da McKinsey, continua no mesmo posto, estando à frente do escritório de Lisboa. “A McKinsey presta serviços a instituições e não a indivíduos ou acionistas. A relação da McKinsey com a Sonangol teve início antes de qualquer envolvimento da senhora Isabel dos Santos. Na Sonangol, a McKinsey era uma das entidades que integrava um grupo alargado de consultoras internacionais contratadas para auxiliar na reestruturação da empresa”, esclareceu a consultora numa resposta enviada de Londres.

Já a BCG optou por não dizer nada. “Temos conhecimento das diversas investigações com respeito a alegações contra Isabel dos Santos. Não é apropriado que a BCG faça comentários tendo em conta que estas investigações ainda se encontram em curso”, respondeu a consultora a partir da sede mundial, em Nova Iorque, acrescentando apenas que a empresa segue uma política de cooperação “com as autoridades governamentais e regulatórias”. Carlos Barradas, que foi quem assinou o acordo com a Ironsea em nome da BCG, deixou a empresa no final de 2020.

Quanto à VdA, o escritório de advogados assegura que “desencadeou o procedimento de admissão de clientes que obedece a todas as regras de compliance que regulam a sua atividade, assim como a um rigoroso processo de KYC (know your client), que vai muito além dos requisitos legais nacionais” — o que significa, na prática, que não encontrou nada de mal no modo como foi recrutado pela Matter. De qualquer forma, e embora o advogado que assinou o contrato com a companhia offshore do Dubai permaneça no escritório, o seu colega que coordenava a equipa dedicada à Sonangol, Rui Amendoeira, deixou de ser sócio da VdA ainda antes do Luanda Leaks ser divulgado.

Qual o conflito de interesses?

No bolo de 20 milhões de dólares que foram distribuídos pela Matter por várias pequenas consultoras e empresas em Portugal, destacam-se aquelas que têm relações diretas com Isabel dos Santos: houve 1,9 milhões de dólares transferidos para a Fidequity e para a Santoro, sendo que ambas pertencem à empresária e ambas, mais uma vez, eram dirigidas por Mário Leite da Silva.

Outros 3,4 milhões de dólares foram transferidos para a sucursal portuguesa da Youcall, uma empresa de recursos humanos angolana em que Isabel dos Santos detinha uma quota de 70% e Paula Oliveira os restantes 30%. Esse valor faz parte de um total de 6,2 milhões de dólares pagos pela Matter a três companhias ligadas à acionista portuguesa da companhia offshore do Dubai. As outras duas, a SDO Consultores e a PCFCNO, são controladas apenas por Paula Oliveira e receberam 1,1 milhões e 1,7 milhões de dólares, respetivamente. A PCFCNO, que teve direito à maior fatia, representa o nome completo da empresária, Paula Cristina Fidalgo Carvalho das Neves Oliveira, e é uma empresa com apenas um funcionário e que foi incorporada na ilha da Madeira em agosto de 2017, três meses antes de receber o dinheiro do Dubai.

Em reação às perguntas do Expresso e da SIC, Paula Oliveira enviou um esclarecimento de 22 páginas, em que nega ter sido “testa de ferro de quem quer que seja”, sendo que “a prestação de serviços à Sonangol, quer diretamente quer através da Matter, inseriu-se numa lógica puramente empresarial, racional e de aproveitamento de uma oportunidade de negócio muitíssimo atraente”. Segundo a empresária, “todo o dinheiro que a Matter faturou e recebeu da Sonangol era-lhe devido” e “a insinuação de que não foram prestados os serviços que foram faturados pela Matter à Sonangol é não só insultuosa” como “é profundamente falsa”.

Por último, foram ainda pagos através do Dubai 11,5 milhões à Odkas, uma outra consultora sediada na Madeira e que é detida em 49% pela mulher de Mário Leite da Silva, tendo prestado serviços relacionados com o software de gestão (SAP) da Sonangol. Carlos Russo, acionista maioritário e administrador da consultora, nega que a Odkas tenha sido selecionada pelo facto de a sua sócia ser casada com o administrador da Matter. “A Odkas tem uma equipa, um historial de projetos bem-sucedidos e um conjunto de competências que a diferenciava positivamente e, estamos em crer, fazia de nós a entidade certa para a função.”

Seja como for, o que as contas da empresa mostram é que o dinheiro do Dubai fez toda a diferença. De 2016 para 2017, a faturação da Odkas mais do que duplicou. E no ano seguinte caiu quatro vezes. EXPRESSO

Last modified on Terça, 16 Fevereiro 2021 21:49
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