Caro Presidente Biden,
Embora eu saiba que, como qualquer povo, os angolanos devem perseguir os seus próprios objectivos de desenvolvimento, também sei que mudanças estruturais na política e na economia de qualquer país do terceiro mundo não acontecem sem a permissão, ou pelo menos sem o consentimento de actores ocidentais, especialmente dos Estados Unidos – e as últimas eleições em Angola dissiparam quaisquer dúvidas a esse respeito.
Ciente disso e pressionado pelas mudanças que tardam a chegar no meu país, resolvi tomar esta iniciativa para de alguma forma tentar convencer o governo americano a adoptar uma nova abordagem em relação a Angola. A América, uma nação que se autoproclama a guardiã da democracia e da liberdade no mundo, não deve continuar a apoiar um regime insanamente corrupto, que insiste em subjugar o seu próprio povo.
Nestes dias sombrios, dizer que os angolanos estão a experimentar uma crise profunda seria um eufemismo. A nossa qualidade de vida sempre foi miserável, mas actualmente está muito abaixo disso. Em Luanda, famílias inteiras recorrem a restos de comida deixados nos contentores de lixo – um fenómeno que não era tão comum mesmo no auge da guerra civil. No que diz respeito aos direitos humanos, há uma onda sistemática de execuções sumárias conduzidas pelas instituições de aplicação da lei. No domínio da economia, também vivemos dias terríveis, pois enquanto a inflação atinge os 30%, apenas 20% dos trabalhadores angolanos têm um emprego formal. E desta percentagem, grande parte aufere uma renda mensal inferior a 76 dólares, o equivalente ao salário mínimo recentemente aprovado. Até ao mês passado, o salário mínimo equivalia a 35 dólares, e actualmente ainda existe um número considerável de homens e mulheres – chefes de família, que ganham muito abaixo disso.
Em contraste, entre 2002 a 2017 dezenas de bilhões de dólares foram drasticamente desviados dos cofres públicos e enviados para contas bancárias no exterior, incluindo nos Estados Unidos, por membros da família do ex-presidente e altos funcionários do estado, muitos dos quais ainda em funções e longe do radar da justiça. Segundo dados oficiais, já foram recuperados mais de 21 bilhões de dólares, em processos judiciais questionáveis, nos quais além da realização da justiça, a Procuradoria-Geral da República e os Tribunais têm uma motivação extra – a recompensa de 10% de todos os activos financeiros e não financeiros por si recuperados – sancionada legalmente pelo Decreto Presidencial 69/21.
Actualmente, o governo angolano está fortemente empenhado na criação de uma nova classe de milionários, composta principalmente por figuras do círculo presidencial. Figuras como o governador provincial de Benguela – Luís Nunes, o director do Gabinete do Presidente da República – Edeltrudes Costas, e o ministro da Energia e Água – João Baptista Borges, são apenas alguns dos nomes mais ilustres entre inúmeras entidades de alto escalão que possuem empresas, muitas das quais offshore, que celebram contratos milionários com as instituições que dirigem.
Numa altura em que quase todos os contratos públicos não obedecem um processo de licitação competitivo, o enriquecimento ilícito ultimamente tem se agravado, sobretudo porque o modelo de contratação adoptado pelo governo, contrário à concorrência e à transparência, tem facilitado que governantes contratem preferencialmente as suas próprias empresas e empresas de familiares e amigos para a execução de grandes infraestruturas públicas. De acordo com o jornal Expansão, dos vários biliões de kwanzas contratados pelos vários órgãos do Estado em 2023, apenas 0,3% do total foram em procedimentos de contratação pública considerados transparentes.
Em relação à saúde, há décadas, a malária continua a ser a principal causa de morte no país, com mais de dez mil óbitos todos os anos. Apesar deste número esmagador de corpos que a doença vem jogando no solo, combatê-la continua a não ser uma prioridade para as autoridades. E as medidas que têm sido tomadas até agora são apenas paliativos destinados a justificar a apropriação criminosa dos recursos públicos. E enquanto os nossos esforços de alternância continuarem a ser frustrados e este regime continuar a merecer o apoio de países como os Estados Unidos, milhares de vidas continuarão a perder se de forma banal.
Dada a magnitude do desastre social em Angola, qualquer apoio ao povo angolano que vise travar ou desmantelar as mentes criminosas que detém o poder, será de natureza puramente humanitária. Mas se a América não puder se solidarizar connosco, pelo menos não obstrua o processo que cedo ou tarde nos conduzirá à alternância.
Digamos que o que aqui peço, contrariamente ao que parece, é também do interesse dos Estados Unidos, porque uma Angola governada por políticos decentes, que com o seu trabalho duro e dedicado permitam com que o desenvolvimento chegue a esta terra, é mais útil para a América, uma vez que oferece aos cidadãos americanos um novo destino turístico em África; e aos empresários americanos, oferece enormes oportunidades de investimento – tal como a África do Sul, onde operam mais de 600 empresas americanas, e cujas trocas comerciais estão avaliadas em mais de 20 bilhões de dólares. Com isso quero dizer que quaisquer ganhos que a América obtém hoje na sua relação com Angola, são ganhos marginais, pois há potencial para muito mais.
E se considerarmos que mais de 12 milhões de afro-americanos têm origem em Angola, influenciar o progresso do país é proporcionar a estes cidadãos americanos um lar ancestral capaz de elevar o seu senso de autoestima.
Se mesmo com todas estas razões, apoiar os nossos esforços para derrubar este regime corrupto parecer uma ideia pouco atraente à primeira vista, a América precisa de se lembrar que tem uma dívida secular para com o povo angolano. Ou seja, vocês nos devem: ao longo de séculos, a América construiu os alicerces da sua estrutura económica com base na força de trabalho de milhares de filhos de Angola que foram cruelmente arrancados de suas terras. Após a independência, a guerra civil que custou milhares de vidas angolanas durante décadas, foi também levada a cabo com dinheiro e armas americanas. E mesmo com o fim desta fase sangrenta da nossa história, ainda não podemos dizer que a América deixou de ser um símbolo de sofrimento para os angolanos. Mas a atuação da América no percurso do povo angolano não precisa ser sempre nestes termos – há uma chance de mudar isso: ensinando-nos o que liberdade e prosperidade significam, e porque isso é o mínimo que vocês deveriam considerar fazer por nós.
Enquanto o povo angolano anseia desesperadamente pela redução dos elevados índices de mortalidade, pobreza, desemprego, analfabetismo, violações dos direitos humanos e da liberdade de expressão – os objectivos do governo liderado por João Lourenço são outros e têm a corrupção como elemento central. Mas a América tem o direito de continuar a desviar o olhar e manter o seu apoio a João Lourenço e seus associados, e pode ainda reforçar esse apoio com a visita que o senhor Presidente fará a Angola em Dezembro. Contudo, a causa dos angolanos triunfará de qualquer forma. E quando isso acontecer, e vai acontecer, porque é inevitável, é provável que haja algum caos capaz de pôr em causa determinados interesses. Logo, a América precisa decidir se irá nos ajudar, ou vai preferir ver o caos tomar conta de tudo. A grande pergunta: a América vai continuar a endossar governos corruptos enquanto os russos tomam a dianteira das revoluções em África? E mais importante, toda a estratégia americana para a África está errada, e o visionário na Casa Branca que enxergar isso primeiro entrará para a História como um deus.
Apoiar a luta dos povos que clamam por liberdade e prosperidade não é só a única maneira sensata de a América se relembrar dos nobres valores que nortearam a sua fundação. É também a fórmula secreta que permitirá a esta grande nação reforçar e legitimar a sua liderança no mundo. E isso deve forçar Washington a repensar os fundamentos da sua política externa, porque a América não será capaz de manter a sua enorme influencia global se continuar a abraçar regimes insanos que só existem para satisfazer os interesses de certos indivíduos e grupos, que no processo condenam milhares de homens, mulheres e crianças a morte prematura. Por último, eu não deveria dizer isso, mas a América precisa se livrar da sua visão míope para ver claramente o volume de oportunidades que o desenvolvimento de África pode trazer para si.
Manuel Marques Carlos