Gene Sharp, defensor da resistência não-violenta e intelectual que inspirou, entre outros momentos históricos, a Primavera Árabe ou a Revolução Laranja na Ucrânia e a resistência birmanesa, morreu domingo aos 90 anos. O óbito do norte-americano foi noticiado quarta-feira. A sua arma eram as marchas, as vigílias, o simbolismo – recentemente, fez parte de uma história de activismo e resistência que marcou Luanda e Portugal. Luaty Beirão, que acabou por entrar em greve de fome, foi detido com um grupo de activistas em Angola por estarem a ler uma versão de Da Ditadura à Democracia, a obra essencial de Sharp.
“Gene Sharp morreu e o mundo perdeu um educador global”, titulava quarta-feira o Peace Research Institute Oslo. Da Ditadura à Democracia foi originalmente editado nos EUA em 1993, mas só foi lançado em Portugal em Dezembro 2015 pela Tinta da China, seis meses depois de o músico Luaty Beirão e um grupo de jovens terem sido detidos por suspeita de estarem a preparar um golpe de Estado – liam Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura: Filosofia Política da Libertação para Angola, de Domingos da Cruz, uma adaptação à realidade angolana do manual de Sharp que tanto preocupou o regime de José Eduardo dos Santos. Um livro descrito como “altamente subversivo” pelo diplomata angolano António Luvualu de Carvalho, uma obra que Ricardo Araújo Pereira, Júlio Pomar, Gisela João ou João Botelho leriam no palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, no dia em que o julgamento dos 15 activistas angolanos começava na capital angolana.
“As suas ideias podem ser fatais para os autocratas”, escrevia em 2011, em plena Primavera Árabe perfumada pelo seu trabalho, o New York Times.
É apenas uma de cerca de 30 obras de um autor conhecido como um dos mais eminentes teóricos pacifistas do mundo, que lista 198 métodos de resistência não-violenta (originalmente parte da sua obra de 1973 The Politics of Nonviolent Action) e que foi traduzido em mais de 50 línguas. Foi também disponibilizado online em mais de 20 idiomas, adaptado, partilhado. O seu trabalho, nascido na era do papel e dos sit-ins, tinha sido viral antes de a internet nascer. Em 2015, perante o caso angolano, “cedeu os direitos de autor aos presos políticos angolanos", como disse na altura a editora e responsável pela Tinta da China Bárbara Bulhosa.
From Dictatorship to Democracy: A Conceptual Framework for Liberation, no seu título original, é um livro poderoso, escrito pelo fundador da Albert Einstein Institution — uma pequena organização sem fins lucrativos que estuda precisamente as formas de desenvolvimento das acções de protesto não-violentas, assim intitulada pelas ideias do físico, com quem Sharp se correspondeu quando tinha 25 anos e que assinaria o prefácio do seu primeiro livro, Gandhi Wields the Weapon of Moral Power: Three Case Histories. Sharp ensinou Ciência Política na Universidade de Massachusetts – Dartmouth, mas também em Harvard. Influenciado por Mahatma Gandhi ou Henry David Thoreau, inspirou por seu turno incontáveis movimentos, organizações e indivíduos. Foi lido no Occupy Wall Street, esteve em espírito entre os “indignados” da crise de 2008 em diante. A revista New Statesman chamou-lhe, por esse lastro, “o Maquiavel da Não-Violência”.
Como a Otpor (“Resistência”), um centro de jovens sérvios dedicado à resistência sem violência, ou "a primeira empresa especializada em revoluções pacíficas", como descrevia em 2004 o Courrier International, que interveio na Geórgia (contra Eduard Chevardnadze), na Sérvia (contra Slobodan Milosevic), e cuja bíblia era, claro, Da Ditadura à Democracia. Fundado em 1999, receberia a visita, anos depois, de Ahmed Maher, fundador do grupo Youth for Change, ligado ao movimento Kefaya (“Basta”), que começou a protestar, a informar e a mobilizar-se em 2004 contra o regime de Hosni Mubarak no Egipto.
O Youth for Change protestava, os seus membros eram detidos, agiam na internet e usavam o Facebook, actualizando os métodos de Sharp (folhetos, graffiti, concertos, ocupações pacíficas e manifestações) para a era Zuckerberg e para a Primavera Arábe. Da Tunísia ao Egipto, era um manual. Mas sublinhava, em entrevista ao New York Times em 2011: “o povo do Egipto fez aquilo — não eu”. Ainda assim, como escrevia a CNN um ano depois, Gene Sharp era “o pior pesadelo de um ditador”.
O livro nascido tendo como destinatário o movimento democrático da Birmânia quando a resistente Aung San Suu Kyi foi detida (ficou 15 anos em prisão domiciliária) teria uso na Ucrânia, durante a Revolução Laranja que derrubou Viktor Ianukovich, e noutros países por dissidentes e resistentes de regimes que consideravam autocráticos, como a Síria ou a Indonésia. O Presidente venezuelano Hugo Chávez dedicou uma das suas comunicações semanais ao país para avisar que Gene Sharp era um perigo, uma ameaça à segurança da Venezuela; o Irão pô-lo também na TV, sob a forma de uma animação em que Sharp conspirava contra o país a partir da Casa Branca; à chegada à Rússia do seu livro, conta a BBC, a tipografia foi alvo de uma rusga dos serviços secretos e várias livrarias sofreram incêndios; foi repetidamente acusado de pertencer à CIA.
Gene Sharp nasceu em Baltimore em 1928 e viveu em Boston, tendo estudado na Universidade Estadual de Ohio. O pai era pastor protestante. Durante a Guerra da Coreia, foi preso durante nove meses por ser objector de consciência depois de, num acto de desobediência civil, ter faltado ao recrutamento. Doutorou-se na Universidade de Oxford com a tese The Politics of Nonviolent Action: A study in the control of political power sob orientação do primeiro biógrafo de Adolf Hitler, Alan Bullock. Viveu na Noruega, trabalhou como secretário do pacifista e activista sindical A.J. Muste e nunca se identificou publicamente como sendo de esquerda ou direita, nem com qualquer partido político – era, disse ao New York Times, “transpartidário”.
Descrito pelos seus entrevistadores e correligionários como uma figura reservada, foi ainda assim ver a revolta na Praça Tiananmen na China, em 1989, e visitou um campo de rebeldes na Birmânia. Terá sido candidato ao Nobel da Paz por várias vezes, uma delas em 2009.
Acreditava que a violência empodera o adversário – “Não se marcha rua abaixo em direcção a soldados com metralhadoras. Isso não é inteligente. Mas há outras coisas muito mais extremas… toda a gente pode ficar em casa. Silêncio total na cidade”, sussurrou, sugestivo, numa conversa em Londres com uma sala cheia em 2012. Caricaturas, bandeiras, cânticos, reuniões são melhores do que a violência – “a melhor arma do nosso inimigo e pode-se ser um herói corajoso, mas morto".
A sua última obra de nota é Sharp's Dictionary of Power and Struggle: Language of Civil Resistance in Conflicts (2011), sobre o papel da linguagem na resolução de conflitos e na resistência. "Ele é geralmente considerado o pai de todo o campo de estudo da acção estratégica não-violenta", confirmou ao diário nova-iorquino Stephen Zunes, perito no tema e docente na Universidade de São Francisco.
Morreu em casa, confirmou Jamila Raqib, directora executiva da Albert Einstein Institution, uma semana depois de cumprir 90 anos. Trabalhava como sua assistente, primeiro, vinda de uma família afegã refugiada, e falou ao Guardian de como é difícil resumir o contributo de Sharp para o mundo que transformou sobretudo como intelectual e teórico, e não tanto como activista. “Era um mundo negro: a ascensão do totalitarismo, armas atómicas, a luta contra a injustiça racial e ele concluiu que não existia uma só cura, uma super-solução, para a opressão. Ele coligiu a sabedoria de milhares de anos de pessoas a combater a opressão.”
“A disciplina da não-violência é fundamental para o sucesso e deve ser mantida apesar das provocações e brutalidade dos ditadores e seus agentes”, escreveu em 1993. E, em 2011, disse ao New York Times: “Se as pessoas não tiverem medo da ditadura, a ditadura está em grandes apuros.” PUBLICO