Foi, muito provavelmente, um caso único em todo o mundo: no fim de 2013, apesar de formal e explicitamente os acionistas do Banco Espírito Santo Angola (BESA) terem comunicado a existência de uma "fraude de dimensão muito significativa", o estado angolano aceitou emitir uma garantia soberana para proteger o banco. Novos documentos que constam do processo-crime do Banco Espírito Santo, em Portugal, revelam muito do que se passou nos bastidores e, sobretudo, várias omissões.
O caso do BESA, apesar de arquivado nos autos do inquérito 324/14, continua em investigação no processo 244/11 TELSB, no qual o antigo presidente da comissão executiva, Álvaro Sobrinho, foi constituído arguido. Mas, durante a fase de inquérito do caso BES (324/14), os procuradores recolheram muita informação sobre os últimos meses do banco angolano.
Um desses documentos é uma carta endereçada pelos acionistas no BESA - onde se incluíam o BES e duas importantes figuras do então regime angolano, os generais Hélder Vieira Dias, Kopelipa, e Leopoldino do Nascimento, Dino - ao então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, pedindo a intervenção estatal. Este documento foi acompanhado de um memorando, em que se referiu taxativamente a existência de uma "fraude de dimensão muito significativa que foi detetada ao nível da sua carteira de crédito e do seu portfólio de ativos imobiliários".
Fraude essa, continuou o documento a que a SÁBADO teve acesso, que não resultou apenas de "negligência ou má gestão", até porque "o sistema de controlo interno e de aprovação de crédito foi eliminado para que quaisquer entidades de controlo não pudessem identificar os comportamentos relatados". Perante estes dados, em junho de 2020, o procurador José Ranito, que liderou a equipa de magistrados que investigou o caso BES, perguntou a Rui Guerra, presidente da comissão executiva do BESA, após a saída de Álvaro Sobrinho: "Porque é que tal carta foi enviada ao Presidente de Angola e ao Banco Nacional de Angola e não à Procuradoria-Geral?"
Engasgando-se por várias vezes nas respostas sobre o BESA, Rui Guerra acabaria por não dar uma resposta concreta, porque já antes tinha sido confrontado pelo mesmo procurador sobre uma hipótese estudada para, em vez de uma garantia, a emissão de um asset protection scheme, o qual passaria pela criação de uma sociedade que, mediante financiamento do próprio BESA com garantia estatal, compraria os chamados ativos tóxicos do banco angolano.
A solução não foi avante, mas, para o procurador, foi uma estratégia "temerária" por parte dos acionistas: "Basicamente", declarou José Ranito na inquirição a Rui Guerra, estava-se, fosse em que cenário fosse, perante "uma ameaça": ou o Estado angolano salvava o banco ou os acionistas, obrigados a um aumento de capital para tentar cobrir as perdas, seriam obrigados a revelar publicamente o buraco nas contas e as suas causas, "com efeitos arrasadores no sistema bancário e financeiro angolano. É isto que estão a dizer", sublinhou o magistrado do Ministério Público, perante novas respostas evasivas de Rui Guerra, que evitou sempre dar respostas concretas sobre esta matéria.
A procura de uma solução para o BESA surgiu depois de, em outubro de 2013, terem sido revelados enormes desvios de dinheiro em duas assembleias-gerais. De ambas as reuniões foram exaradas atas, porém algumas minutas apreendidas pelo Ministério Público revelam mais informação do que aquela já conhecida. Por exemplo, durante vários anos, Álvaro Sobrinho terá feito levantamentos em numerário de 525 milhões de dólares, e sociedades ligadas a ele terão beneficiado de 192 milhões de dólares em transferências internas e 196 em transferências internacionais.
Documentos apreendidos na sociedade Abreu Advogados indiciam ainda que o texto final da garantia soberana angolana - revogada um dia antes de o Banco de Portugal ter anunciado a resolução do BES, a 4 de agosto de 2014 - foi exclusivamente pensado e preparado por aquela sociedade de advogados. No fundo, ter-se-á tratado de uma decisão política angolana com paternidade portuguesa. Rui Guerra não confirmou a suspeita do Ministério Público, garantindo que o Banco Nacional de Angola e o ministério das finanças deste país tiveram um papel importante. Um advogado da Abreu, José Corrêa Sampaio, chegou a ser constituído como arguido no processo do BES, mas o seu caso foi arquivado.
Nos últimos dias do ano 2013, registou-se um autêntico contrarrelógio entre advogados da Abreu e gestores do BESA para se chegar a um texto final, sendo certo que nestes emails não surge nenhum responsável angolano. O trabalho terá começado logo no início de dezembro de 2013. No dia 3 desse mês, a advogada Cecília Correia deu a conhecer a outros três colegas de escritório os primeiros passos para a emissão de uma garantia de Angola. Nas suas palavras, "o caminho da luz". SÁBADO